Morrer na Moita:
comentário
Introdução
Este trabalho foi realizado com base nos livros paroquiais do
concelho da Moita, em particular dos assentos de óbitos, e em diversa
documentação recolhida nos arquivos locais.
Não tem por objectivo elaborar qualquer tese sobre morte nem
sobre a mentalidade ou cultura subjacente às práticas fúnebres e religiosas da
época.
Pretende-se simplesmente dar a conhecer, em especial aos
moitenses, um pouco da sua história e fornecer algumas informações sobre a vida
(e a morte) nesta vila e no concelho.
É, portanto, um trabalho informativo, sem pretensões
académicas ou científicas, mas, com o rigor histórico e o suporte documental
exigível.
Infância
Relativamente aos óbitos na Moita, ressalta desde logo a
elevada mortalidade infantil, que aliás, é generalizada. É impossível efectuar
estatísticas sobre este assunto pois bastantes pessoas, ao sentirem-se doentes
procuram tratamento no hospital de S. José em Lisboa e lá acabam por falecer, não
entrando por isso nos registos locais. Sabemos que seriam bastantes os
moradores da Moita a recorrerem a este hospital pois as verbas pelos serviços
prestados eram remetidas para cobrança à Câmara Municipal e foram registadas
nos livros de contas. Eram verbas elevadas que chegavam a largas dezenas de
milhares de reis, em alguns anos atingiam mesmo as centenas.
Constata-se que se tratava de um problema grave. Verifica-se
pelo número de crianças exposta na Roda, que na Moita ficava numa das últimas
casas da rua de Palmela, eventualmente para possibilitar a descrição
necessária.
A Câmara pagava a rodeira e as amas que criavam essas
crianças e cujos nomes são referidos nos documentos. Contudo não se tratava de
nenhum acto de caridade, pelo contrário. A Câmara cobrava um imposto destinado
especificamente ao apoio aos órfãos e aos expostos, verba que entrava no
chamado cofre dos órfãos e tinha administração própria com juiz, escrivão e
outros funcionários. Dessas verbas nem dez por cento era utilizado para os fins
a que se destinava. Sempre que a Câmara tinha problemas financeiros, e eram
constantes, para efectuar obras, pagar a fornecedores ou a funcionários,
retirava o dinheiro do dito cofre dos órfãos, que, como é óbvio, nunca voltava
a repor.
Não temos registos específicos, mas pelo número de óbitos que
se verificavam, identificados nos assentos de óbitos, e pelos de casamento, em
que as pessoas eram identificadas, que muito poucas dessa crianças deixadas na
roda chegariam à idade adulta. Talvez por isso a Câmara determinou que as amas
só fossem pagas depois do Facultativo Municipal (Delegado de Saúde) consultar
as crianças e atestar que estão bem tratadas e de saúde. A medida, embora
louvável, parece ter produzido fracos efeitos. É uma situação onde parece que as
amas estão mais interessadas nas verbas que recebem do que em cuidar das
crianças que lhe foram entregues. Por isso, ou talvez por isso, surgem neste
período bastantes crianças abandonadas à porta das pessoas mais ricas, (o que
sabemos pelos registos de baptismo), pois assim a mãe que deixa o filho,
acredita que sendo criado por essas pessoas será melhor tratado.
É possível também aquilatar a gravidade da situação pelos
pedidos de subsídio feitos à Câmara para criar crianças, sempre pela mesma
razão, a miséria dos pais, que era, aliás quase geral.
Se o abandono de crianças era uma praga, ainda assim surgem
casos, embora raros e espaçados no tempo, de casais que procuram
intencionalmente adoptar crianças, eventualmente devido a problemas de
infertilidade, visto que esses casais nunca surgem a baptizar filhos próprios.
Outro factor potenciador da elevada mortalidade infantil, já
na época diagnosticado pelos médicos, nomeadamente pelo doutor Silva Evaristo,
ao referir as péssimas condições higiénicas em que as pessoas viviam e que só
na viragem do século XIX a Câmara começou a dedicar alguma atenção, começando a
fazer a limpeza das ruas, a legislar contra as práticas em uso de abandonar
imundices em locais públicos ou de circular e criar animais nas ruas da vila,
entre outros. Elucidativo foi a morte de duas crianças da escola primária
atribuídas ao facto desta estar situada perto do porto da lama, (porto da
merda, pois era disso mesmo que se tratava). Inclusive a própria professora
chegou a queixar-se à Câmara que devido aos odores nauseabundos exalados do
dito porto, adoeceu, estando vários dias e por várias vezes com náuseas e
vómitos.
Por último a mortalidade relacionada com o parto. Muitos são
os casos de mulheres e seus filhos que morrem durante o parto. Outros haverá
que não sendo possível detectar imediatamente pois a mãe, não morrendo durante
o parto, acabava por morrer alguns dias ou semanas depois devido a causas
relacionadas com o parto.
Acidentes
Relevante para a mortalidade local é a morte por afogamento.
Morrem pessoas afogadas nas marinhas, nas caldeiras dos
moinhos, nos charcos, e nos poços, eventualmente ocasionais, mas também, e em
elevado número, que caem acidentalmente à água ou aparecem mortos a boiar no
Tejo e são trazidos para terra pelos marítimos locais, ou simplesmente aparecem
mortos nas praias. Sabemos também por outras fontes que muitos moitenses,
acidentados nos barcos não surgem nos registos locais porque esses acidentes se
deram noutros locais, nomeadamente em Lisboa.
Também a actividade marítima local regista óbitos por
acidente, concretamente de duas maneiras; ou o acidentado caiu da verga ou a
verga caiu-lhe em cima.
Morrem ainda pessoas vítimas de tiros, alguns presumivelmente
acidentais, outros vítimas de crime ou devido a desacatos. Da mesma forma são
referidas pessoas que morrem na sequência de facadas e de pauladas.
Com a chegada do comboio começa também os acidentes
relacionados com esta actividade. Ou caem do comboio ou são apanhados pela
máquina ou ainda por descuido são trucidados pela composição.
Doenças
É óbvio que o principal factor para a mortalidade é a doença.
Os registos só em curtos espaços de tempo informam o tipo de doença eventual
causa imediata da morte.
As doenças registadas mais comuns seriam: tísica, moléstia,
hidrofisia, malina, apoplexia, anginas, bexigas, pneumonia, varíola, hemorragia
cerebral, meningite, gripe, tétano, tuberculose, estupor, perniciosa, cólera,
moléstia de peito, moléstia de deitar sangue pela boca.
As crises epidémicas eram também frequentes. Doenças
contagiosas matavam famílias inteiras ou várias, na mesma rua, com pouco tempo
de intervalo entre elas. Particularmente as crianças eram as mais afectadas.
Vários casos de seis, oito ou dez crianças, por vezes vários irmãos ou vizinhos
morriam em poucos dias.
Neste particular refira-se o ano de 1833, em que a epidemia
de cólera matou três a quatro vezes mais pessoas do que em ano normal. Apesar
de alguns historiadores afirmarem que esta epidemia quase extinguiu a
população, trata-se de um manifesto exagero. Até porque a população foi
imediatamente reposta por gentes oriundas de outras regiões do país.
Não deve ser, apesar disso, menosprezada, até porque, no caso
da Moita, e das freguesias vizinhas esta epidemia foi particularmente dura. As
pessoas começavam por se sentir indispostas, seguido de vómitos e num ou dois
dias morriam. Também aqui não é possível obter contas exactas, pois o padre
desistiu de fazer os respectivos assentos, fosse devido à quantidade de óbitos
fosse pelo medo de contágio. Só depois de passada a maior intensidade da crise,
nos meses de Abril a Julho, o Vigário Geral ordenou ao padre local que
registasse todos os nomes de que se lembrava, determinando que fizesse todas as
diligências possíveis para saber quem tinha morrido, o que ele fez, deixando
uma lista com o nome de cerca de cinquenta pessoas sem outra qualquer
referência.
Mas é certo que não registou todos. Até 1850 vão surgindo
pessoas a solicitar certidões do assento de óbito dos seus familiares. A última
referida está datada de 22-11-1850 e é de tal forma elucidativa que sem qualquer
comentário passo a transcrever:
Diz Mariana da Luz,
casada com Alexandre Lino, ausente neste Reino, que pelo documento junto mostra
ter tido um filho por nome Francisco. O qual faleceu na vila da Moita no ano de
1833 na ocasião das moléstias por motivo das quais não se lavrou o óbito do
falecimento do dito seu filho; bem como de outras pessoas que faleceram naquela
época.
Nesta síntese referência ainda para bastantes pessoas que estando
doentes viajam de diversas localidades do sul do país, com destino ao hospital
de S. José em Lisboa, acabando por morrer na Moita, tanto no barco da carreira
como no próprio cais. Depois será no comboio, chegando este a deixar cadáveres
de indivíduos que entretanto tinham falecido na viagem.
Onde se morre
Como se pode verificar pelos casos que transcrevi em “Morrer
na Moita: curiosidades” e fazem parte documental deste trabalho, morre-se em
todos os locais do concelho, sejam públicos ou privados. Nas vinhas e nas
hortas, nas palhotas e nos becos, nas estalagens ou no meio das ruas e largos,
na estação dos caminhos-de-ferro ou na cadeia.
No caso dos mendigos, morrem mais ou menos abandonados e em
situação de extrema penúria. Ao tempo, todo o indivíduo do povo, homem ou
mulher, chegando a idade de não conseguir trabalhar, ou com qualquer idade
sendo deficiente, a única forma de sustento era a mendicidade, vivendo do “amor
dos fiéis”.
Surgem também em número significativo pessoas que aparecem
mortas na casinha dos pobres, como é referida no início do século XVIII, mais
tarde referida como “a casa onde os pobres se recolhem”, posteriormente como
auspício e ainda como hospital, referindo-se sempre ao mesmo local,
eventualmente melhorado e restaurado, levando inclusive a que em localidades
vizinhas a ser pelidada como misericórdia da Moita. Este estabelecimento
estaria situado na rua da Estação, travessa da Pinta, fronteira ao largo Conde
Ferreira.
Como se morria em todos os locais do concelho é possível
fazer uma relação, assim temos, na vila: ruas; do Cais, das Canas, da Praia, do
Porto, Direita, do Arneiro, do largo do Poço, da Praça, da Fábrica, da
Azinhaga, de S. Sebastião, de S. António, do Poço, de Palmela, de Setúbal, nova
de Palmela, Direita da Igreja, da Estação ou dos Caminhos-de- Ferro, do
Rosário, do Arrabalde, do Paço, Conde Ferreira, da Praça de Touros, do
Matadouro, dos Fornos de Cal. Travessas do Félix, do Barbosa, do Ministro, do
Possinho, da Praça de Touros, dos Ferreiros, da Palmeira, do Cipriano, da
Quinta, Travessa Nova, do Cais, da Piedade, do Espanhol.
Largos, das Flores, do Bica, do Arneiro, de S. Francisco de
Paula, do Príncipe Dom Carlos, do Capitão-mor, da escola Conde Ferreira, do
Poço, do Poço das Bravas, da Igreja, da Praia, de Manuel da Costa, da Pinta, do
Cais, da Madre de Deus, da Praça de Touros, da Caldeira, de Joaquim Tomás, do
Alferes.
Ainda o Canto do Joaquim Tomás, os pátios de José Ferreira,
do Cordoeiro, do José Martinho e do José Ratinho.
Fora da vila temos: Sarilhos, Rosário, Broega, Brejos,
Carvalhinho, S. Sebastião, Barra Cheia, Arroteias, Chão Duro, Alto do Rosário,
Alto da Moita, Esteiro Furado, Gaio, Pinhal da Areia, Alto da Malhada, Brejos
de Água Doce, quinta da Ponte do Caia, sítio da Cruz das Almas, sítio do Palheirão,
Alto do Pontão, Fazenda do Cordoeiro, quinta de Santa Rosa, sítio da Horta,
quinta dos Fundilhões, sítio da Bela Vista, sítio da Quintinha, quinta de S.
Domingos, sítio das Caldeiras, sítio do Moinho Novo, Arroteia do Ratão,
Arroteias de Sarilhos, Abreu Pequeno, Abreu Grande, Quinta da Freira,
Calcanhar, Casal da Fonte da Areia e Bairro Costa.
Locais de enterro
No concelho da Moita os enterros são efectuados em diversos
locais, até à interdição de os fazer nas igrejas.
Destaque para a igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, tanto
no interior como no adro, nas capelas de S. Sebastião, do Rosário e de
Sarilhos, também tanto no interior como no adro. Com a proibição dos enterros
nestes locais a Câmara constrói um cemitério, que não sei precisar o local, mas
ficaria perto do Porto, e depois, por motivos que a documentação que tive
acesso não esclarece, transferiu-o para as traseiras da igreja. A documentação
dos arquivos locais decerto fará luz sobre o assunto.
No final do século é construído o cemitério no Alto de S:
Sebastião, cujas peripécias da sua inauguração e bem assim o regulamento pode
consultar neste blogue. Refira-se ainda que existem pessoas sepultadas em
vários locais, nomeadamente nas praias do Rosário e de Sarilhos, porque eram
encontradas em adiantado estado de decomposição, e, então, eram enterrados no
próprio local em que eram encontrados.
Dentro do espaço das igrejas, (até à construção dos
cemitérios) uns eram sepultados outros enterrados, o que além de ser uma
questão de diferenciação social era também uma questão de localização.
Assim, os padres tinham a sepultura eclesiástica, em local
junto do altar principal. As pessoas de maior estatuto social e económico eram
sepultadas dentro da igreja em jazigos de família e em locais privilegiados
relativamente às eventuais benesses divinas. Os membros das confrarias e
irmandades tinham covais próprios. O conjunto do povo ou tinha dinheiro e era
enterrado no adro com alguma dignidade, ou sendo miserável era enterrado “por
caridade” e ia para o “cemitério” ou seja a vala comum.
Da mesma forma relativamente ao tipo de enterro. A forma como
as pessoas eram sepultadas também variava. A grande maioria era de “corpo à
terra”, alguns poucos de caixão e raros em jazigo.
Também as cerimónias públicas eram variadas, sendo a maioria
enterrada sem qualquer ritual. Uma pequena minoria é acompanhada pelos
cerimoniais religiosos que vão da simples missa ao acompanhamento fúnebre com
procissão, dependendo das quantias monetárias que a família do defunto, ou o próprio
por testamento tivesse disponível para gastar.
Comum era o facto de o padre registar no assento de óbito se
o falecido tinha, ou não, feito testamento. A maioria das pessoas não o fazia
“porque não tinha de quê”. Os que o faziam deixavam determinadas quantias, ou
bens, destinadas a missas por sua alma e de seus familiares. Em alguns casos o
testamento é feito “vocalmente”, ou seja, era aquilo que o sacerdote atestava
que o falecido tinha estabelecido, à hora da morte, sendo apenas o próprio
sacerdote testemunha do testamento.
Apelidos e alcunhas
Na relação dos óbitos inseridos no artigo “Morrer na Moita;
curiosidades”, vão referidos um número significativo de apelidos e alcunhas,
todavia o seu número total tornaria a dita relação demasiado longa e sem
particular interesse. Por isso, e apenas por curiosidade, aqui deixo os
apelidos e alcunhas que detectei, muitas de pessoas bem conhecidas na Moita,
alguns dos quais meus amigos: Preta, Preto, Balceiro, Calafate, Calote, Calhau,
Caramelo, Mexilhoca, Castelhaninho, Machoqueiro, Freira, Proença, Ruivo,
Delgadinho, Outeiro, Patronilho, Balim, Barritier, Lagartixa, Gago, Canhoto,
Sustancia, Marão, Trabalhador, Algarvio, Carranquinha, Forneiro,
Carpinteirinho, Cassoa, Emaus, Marram, Marítimo, Moleiro, Cota, Desgarrada,
Ratinho, Pepe, Ramelas, Arrepia, Feio, Casado, Branquinho, Mulata, Corista,
Russiano, Buchas, Santa Marta, Manica, Ilhéu, Pascoal, Margarido, Papa Bolos,
Cigano, Libério, Cainé, Bagante, Lasca, Chaves, Roquete, Santinho, Fatia,
Cantante, Manço, Castanheida, Marinheiro, Cazequinha, Manique, Faquinha,
Fraqueira, Abra, Preguiça, Negrão, Casa Branca, Cadete, Camarinho, Pena Guião,
Vendeiro, Sardo, Polido, Bexiga, Papada, Marateca, Ferrinho, Páscoa,
Balravento, Rolo, Minhoto, Rebolo, Palhaço, Dorça, Pitangas, Novo, Velho, Sem
Juízo, Cachamão, Prestes, Não Perca, Marinhenga, Catarrinho, Espanhol, Tapisso,
Moscardo, Bonita, Peixeiro, Pimpão, Borda d’ Água, Barriga, Marto, Patronilha,
Alcobaça, Carromeu, Beiroa, Mouco, Ratão, Avoa, Argau, Formas, Terras, Rego,
Cabau, Farinha, Catina, Magina, Tilha, Regra, Cantarino, Ramalheiro, Boa
Viagem, Gamboa, Talhadas, Carona, Bronze, Rasmalho, Brinca, Menina, Cartaxo,
Buxa, Vareiro, Carraça, Faim, Bife, Mena, Reimão, Corgeiro, Fetinhas, Feiteira,
Campante, Cobélos, Alegria, Espada, Quitério, Sereno, Pataco, Carabineiro,
Raposeiro, Casaca, Ferro, Carrapeto, Cruzado, Canas, Barreto, Condinho,
Escumalha, Pitanças, Seco, Catarro, Cachucho, Arrábida, Doirado, Chaves,
Miquelino, Rufino, Nora, Saragaço, Bonjour, Broega, Fábrica, Tosquiador, Lé,
Ucha, Frade, Moço, Lapuz, Cantanhede, Ferelume, Murilhas, Lomba, Amieiro,
Carregosa, Carregal.