MORRER NO TEJO
1750-1850
Introdução
Ao consultar os livros de óbitos das freguesias da zona
ribeirinha da margem sul, ou “outra banda”, de Alcochete ao Seixal, (não inclui
Almada porque só existem registos no final do século), constatei que morreram
pessoas de todas as formas imagináveis.
Morre-se de tiro, acidental ou intencional, de facadas,
pauladas, chacinado e espancado. Morre-se por acidente debaixo de carroças e
carretas, esmado por pedras e soterrado. Morre-se ainda em situações pouco
comuns como ser atingido por um raio, cair-lhe um pinheiro em cima ou
“afocinhado numa poça de lama e água”.
Morre-se de causas naturais, doenças e de complicações
relacionadas com o parto, morrendo mãe e filho. Até se morre metade dentro da
mãe metade fora.
Morre-se em todos os locais, em casa, nas ruas, largos e
praças públicas, nos campos, vinhas e pinhais, nas igrejas, hospitais e
estalagens, nos palheiros, pocilgas e quintais, carroças e carretas.
Mas, também constatei, que das muitas formas que as pessoas
morreram, o Tejo foi o que mais matou. Morre-se no Tejo de muitas e várias
maneiras.
O mesmo Tejo que é fonte de vida, pode ser também causa de
morte. O Tejo é generoso, dá-nos a água maravilhosa onde nos banhamos, remamos
ou velejamos, seja por desporto ou recreio, que nos dá o sal e uma imensa
variedade de peixe e marisco que nos alimenta. Nos dá a energia que durante
séculos alimentou os moinhos e azenhas que fizeram a nossa farinha, e nos dá a
água que bebemos e rega as nossas plantas, como até consome a porcaria que
fazemos.
O Tejo está vivo e dá vida a quem o sabe utilizar.
Pelo contrário, não o saber utilizar ou não o utilizar com o
devido respeito, representa a morte, e é um assassino implacável, que não
escolhe idade nem sexo, e foi a sepultura de dezenas de pessoas, tragou-os e
não os devolveu, qual Deus a exigir sacrifícios.
As principais vítimas deste assassino são as pessoas que mais
o utilizam, que vivem dele e precisam dele. São as pessoas das diferentes
actividades, designados profissionalmente como marítimos e os pescadores, em
que a sua ferramenta de trabalho é o barco.
O limite temporal deste trabalho justifica-se, por dois
motivos; porque se o antecipasse pouco acrescentaria ao tema, além de aumentar
o número de vítimas, pois quanto mais antigos, menos esclarecedores são os
acentos, e, se o prolongasse apenas acrescentaria situações pontuais de alguns
afogamentos, pois, após 1850, a navegação à vela foi sendo substituída pelo
motor e os desastres no rio desapareceram, como no caso do Barreiro que foi a
localidade mais fustigada e depois não regista um só acidente no rio, passam a
acontecer acidentes mortais nas fábricas, esmagados entre carruagens ou debaixo
de comboios.
Naufrágios
O maior número de mortes no Tejo é provocado por naufrágios,
sobretudo de barcos de pescadores. Atingiram principalmente o Barreiro e o
Seixal, mas também ocasionalmente a Moita e a Arrentela.
Devido a naufrágios morreram 217 pessoas, das quais cerca
metade nunca mais apareceu, num dos casos apareceu em França na localidade de
Caena. O total de vítimas é, no entanto, superior, porque em algumas situações
o registo refere apenas o dono ou arrais do barco, dizendo apenas que morreram
todos os que andavam na “companha”, não dizendo quem. Eventualmente por
desconhecer quem eram as pessoas que compunham a tripulação da embarcação.
Os naufrágios ocorreram na maioria junto, ou à saída da
barra, embora também acontecessem frente a Lisboa, a Paço d’ Arcos ou a
Cascais, ou junto à Torre do Bugio. Existem casos que não refere o local exacto
desses naufrágios, simplesmente foram no rio.
Aconteceram outros, já no oceano, frente a Peniche, no mar da
Costa ou em Sesimbra, mas não estão incluídos nesta relação.
Os naufrágios aconteciam devido a más condições climatéricas,
como temporais e furacões, como aconteceu em 20 de outubro de 1759, 15 de Março
de1784, 31 de outubro de 1845, este acompanhado de tremor de terra, e do
celebérrimo 1 de novembro de 1755, que não provocando ou não ficando registado
acidentes no rio, as suas águas inundaram o Seixal matando muitas pessoas, e
surpreendeu duas pessoas no Barreiro que estavam nos moinhos.
Quando os barcos naufragavam era vulgar morrerem todas os
ocupantes da embarcação. Assim sabemos que a tripulação de uma falua, de um
bote ou de uma moleta, era de nove pessoas, incluindo dois ou três menores.
Noutras duas situações, em que não esclarece o tipo de embarcação, referindo
apenas tratar-se de um barco, a tripulação era, num caso de onze pessoas e
noutro de doze.
Alguns destes barcos que naufragaram o padre registou os seus
nomes, assim temos; Peralta, Adega, Franca, Campainha, Fartura, Casquilho e
Patarata.
Alagamento
Também é referido o alagamento de barcos. Registo 16 pessoas
que morreram por esse motivo.
Deduzo que são barcos pequenos porque causam apenas uma
vítima, ocasionalmente duas. Seriam eventualmente batelinhos, ou bateiras.
O alagamento varia do naufrágio, porque neste caso sugere que
é o barco que apresenta deficiências, fossem de construção ou de calafetagem,
e, por isso, deixa entrar água e afunda-se.
Numa situação foi o barco que se virou, não explica o motivo,
também não fala de mau tempo, pelo que poderia ter acontecido por várias
razões.
Sabemos que os barcos da carreira, como no caso da Moita,
eram sujeitos a vistorias, pelo menos ao entrar na carreira a primeira vez, e
sempre que havia denuncias de falta de segurança. Estes barcos são vistoriados
em termos de construção e calafetagem e são obrigados a ter sempre no barco
vários apetrechos suplentes, como velas, remos e cordas.
Duvido que os outros barcos tivessem essa obrigação. Julgo
que a segurança das embarcações estava ao cuidado dos proprietários.
Achado na praia
Comum em toda a região
é o aparecimento de indivíduos trazidos pela maré e apareciam cadáveres nas
praias. Contabilizei 61 casos.
Muitos, já em avançado estado de decomposição, e na
impossibilidade de os transportar para as igrejas, foram enterrados no local em
que foram encontrados, pelo que em todas as freguesias existem pessoas
enterradas nas praias.
É também possível constatar que alguns desses indivíduos
terão sido assassinados e posteriormente lançados ao rio, pelos sinais de
violência que apresentavam, ou com o propósito de morrerem afogados, o que me
parece evidente quando se trata de crianças, ou até de bebés, como num registo
que afirma que a criança “parece ter um ano”.
Nalguns casos os registos dizem que pelas roupas parecem ser
espanhóis ou franceses, marinheiros de barcos fundeados no Tejo, noutros dá
informações sobre as roupas ou objectos dessas pessoas. A afirmação ganha mais
probabilidades pelo facto dessas pessoas raramente serem reconhecidas.
Apanhado no rio
Também é referido o caso de indivíduos que são encontrados a
boiar no rio, e trazidos para terra pelos marítimos nos seus barcos. Nesta
situação registei 8 casos. Parece-me que a situação é igual aos encontrados na
praia, simplesmente são achados antes de dar à praia.
Veio na rede
Situação idêntica às anteriores é a de dois indivíduos que
apareceram nas redes de pescar, andando os pescadores na respectiva faina.
A nadar
Por andarem a nadar ou a tomar banho no rio morreram 4
pessoas. Não dando mais explicações as causas para se afogarem podem ser
várias.
Todavia é de referir, que para nadar ou tomar banho no rio,
naquele tempo como hoje, deve ser feito em locais minimamente seguros. O
desconhecimento de marés e correntes pode ser fatal, pelo que não nos devemos
aventurar em locais que não conhecemos.
Nas caldeiras
As caldeiras e os moinhos também são parte integrante do rio.
Estas situações ocorrem sobretudo com crianças, e, são referidas por terem sido
ocasionadas por descuido, ou, por “desgraça”. Normalmente as pessoas só se
apercebem depois do afogamento consumado. Morreram nesta situação 13 pessoas.
Uma dessas pessoas, um adulto, caiu na caldeira, foi traçado pela roda do
moinho.
Caiu do barco
Acontece também as pessoas caírem do barco, o que vitimou 15
pessoas. Numa das situações trata-se do único caso em que é referida uma
mulher, diz o registo que ia numa “fragata de palha e caiu”. Os registos não
pormenorizam, mas, é fácil perceber que não cumprindo os requisitos mínimos de
segurança as pessoas arriscam cair na água.
Para andar em barcos à vela é necessário saber estar dentro
do barco.
Algumas dessas pessoas que caíram na água nunca mais
apareceram, o acento de óbito é feito porque a morte é confirmada por
testemunhas idóneas, normalmente as outras pessoas que iam no mesmo barco.
Afogados
Referidos por terem morrido afogados são 154 pessoas, sem
mais explicações, o que não permite tirar ilações. Todavia o número elevado de
casos sugere que ocorreram em diversas situações. Podiam alguns ter morrido
afogados e não ser necessariamente no rio, mas nesses casos os registos dizem
que foi num poço, ou num charco, ou até mesmo no rio dos Judeus em Coina ou no
rio das Enguias em Alcochete, mas esses não os inclui neste trabalho.
Apenas duas situações são esclarecedoras. Uma diz que o
indivíduo “se levantou delirante e se afogou”, na outra afirma que a pessoa
morreu afogada quando “o queriam prender para soldado”, o que se deduz que
fugiu para dentro de água.
Ia no barco
Embora não tivessem morrido afogados, não posso deixar de
incluir outras situações relacionadas com o rio.
Era vulgar as pessoas doentes irem tentar curar-se no
hospital de S. José em Lisboa, e a única forma de lá chegar era através do
barco. Por isso 14 pessoas acabaram por morrer no caminho, ou seja, no barco
durante a travessia do rio.
No barco
Aconteceu também que 6 pessoas foram encontradas mortas no
barco, estando este em terra. É provável que estivessem a fazer a manutenção do
barco, a trabalhar nos apetrechos ou simplesmente a descansar, certo é que a
morte podia apanhar as pessoas em qualquer lugar, o barco como local onde o
marítimo passava a maior parte do seu tempo, não é surpresa morrer aí.
No cais
Outros, pelas mesmas razões, nem chegaram a iniciar a viagem.
Morreram no cais aguardando pela maré para embarcar.
Outras situações
Outras situações que provocaram a morte em, ou por
actividades nos barcos.
Dois indivíduos caíram da verga e morreram, outro também caiu
da verga bateu na borda da bateira e teve o mesmo triste fim. Outro caiu do
mastro para o convés “ficou logo morto”. Enquanto um indivíduo caiu do barco,
deduz-se que estaria em terra, “não falou mais”.
Houve quem morresse a tentar saltar do seu barco para uma
nau, sem mais esclarecimentos, e outro na mesma situação, ao subir para a nau,
“escorregou-lhe as mãos”.
Houve uma pessoa a quem “caiu um pau na cabeça estando
arpando um barco” e outro “morreu desgraçadamente debaixo da verga de uma
embarcação”.
Houve ainda quem morresse por “queda no barco” e outra pessoa
por “bater com a cabeça no leme”
Também morreu um indivíduo por lhe “cair um barco em cima”, o
que só poderia ter acontecido estando o barco no estaleiro.
Ainda a registar o caso de dois indivíduos que morreram
atingidos por tiros disparados de barcos fundeados no rio, num dos casos diz
mesmo que era um barco inglês.
Por fim, um indivíduo foi vítima de um raio andando a pescar
e outro caiu na “lama de uma marinha e morreu”.
Outra informação
A leitura destes acentos de óbito dá-nos ainda outra
informação. Quanto à tipologia dos barcos são referidos; bote, bateira, batel,
batelinho, falua, moleta, barco da carreira, fragata de esterco, fragata de
palha, barco do moinho e fragata de Sua Majestade, que no caso era de Palhais e
servia nos fornos de biscoito.
Também de referir que os nomes dos peixes, assim como dos
apetrechos náuticos e de pesca, como das diversas actividades marítimas surgem
como alcunhas e depois apelidos, que ainda hoje persistem apesar das
actividades terem desaparecido.
Ficamos também a saber que, para além de todas estas
localidades ribeirinhas terem o seu cais de embarque, havia outros para
actividades específicas, como o cais do tojo, da lenha e do carvão. Assim como
os moinhos e fornos terem os seus cais próprios.
Conclusão
Nestes cem anos, morreram directamente afogados no rio, ou em
actividades com ele relacionados 530 pessoas, mais as que sendo vítimas de
naufrágio não foram registadas, dizendo tão só que são a “companha” de
determinado barco.
É possível que outros tivessem morrido e não foram
registados, porque não havendo testemunhas o óbito não era registado. O corpo
podia ser levado, mas não havendo certezas não havia registo.
Podemos também concluir que a vida no rio era particularmente
perigosa. Não havia previsões climatéricas, que ainda hoje podem até levar ao
encerramento da navegação, a possibilidade de ser surpreendido por más
condições estava sempre presentes.
Indiscutivelmente, no rio e nas actividades marítimas foi
onde ocorreram mais acidentes mortais. Incomparavelmente mais que em outra
actividade profissional ou vítimas de outro tipo acidente, ou de crime, (tiro,
facadas, pauladas).