domingo, 15 de maio de 2016

Caramelos na freguesia de Palmela

Introdução

Este trabalho sobre os caramelos na freguesia de Palmela é baseado na consulta dos assentos paroquiais.
A utilização do termo caramelo é apenas por comodismo nesta abordagem. O termo aparece apenas uma vez num assento de óbito e duas vezes como apelido, sendo que numa das vezes a pessoa é natural de Palmela e na outra de Azeitão. Vejamos o referido assento:

Aos trinta e um dias do mês de Março de mil oito centos trinta e
nove anos faleceu ab intestado, recebendo somente o Sacramento da
Extrema Unção, José Joaquim, vulgo o Caramelo, viúvo que era de
Bernarda Rosa, e foi sepultado no cemitério d’ esta fregue-
sia de Santa Maria de Palmela, de que fiz este termo que
assinei
O Prior Encomendado João Maria Boino
na margem; José Joaquim Caramelo

Utilizo-o genericamente às pessoas que vieram da Beira Litoral e se fixaram em parte da zona rural da freguesia de Palmela. Neste trabalho incluí também localidades próximas da referida província.
No sentido em que era utilizado no final do século XVIII e início do século XIX a documentação não esclarece.
Por isso confesso que não sei o significado que os contemporâneos lhe atribuíam.
No trabalho com o mesmo título sobre o concelho da Moita, que está disponível neste blogue, transcrevi os assentos em que o termo é utilizado, e sobre o concelho do Barreiro divulgarei nos próximos dias. A análise desses assentos não esclarece o que era um caramelo, mas, em parte, diz-nos o que não era. Por exemplo, uma pessoa que foi enterrada sem se saber quem era, nem mesmo o nome, é referenciado como caramelo. Porquê? Como se sabe que alguém é caramelo olhando para ele? Da mesma forma se em locais como a Venda do Alcaide os habitantes não são apenas oriundos da Beira Litoral, mas também de outras regiões do país, como se diferenciam os caramelos?

Origem e quantidade

Cruzando os assentos de casamento com os de baptismo podemos saber o número e origem desta população que se fixou na freguesia de Palmela, com uma margem de erro mínima devido ao facto de algumas pessoas casarem várias vezes, alguns terem o mesmo nome ou porque ao longo da vida adquiriram alcunhas e são assim tratados, sendo particularmente difícil saber se são ou não as mesmas pessoas e porque apenas na segunda metade do século XIX os registos são mais precisos nas informações.
Assim podemos elaborar a seguinte tabela:

Localidade                                 Homens          Mulheres
Cadima                                           112                    48
Tocha                                             110                     84
Arazede                                            90                     60
Mira                                                  80                     55
Quiaios                                             57                     43
Cantanhede                                     54                      23
Coimbra                                           36                      18
Liceia                                               15                        8
Viseu                                                22                       3
Aveiro                                               13                       7
Ferreira a Nova                                11                       5
Alhadas                                              8                       5
Folques                                             12                      1
Louriçal                                              9                       2
Leiria                                               8                          2
Lamego                                          11                         3
Guarda                                           10                         4
Vila Real                                          5                         2
Porto                                                4                         1
Braga                                             11                         2
Vagos                                              5                         1

Esta tabela não deve ser somada com as divulgadas para as freguesias da Moita, Sarilhos Grandes e Alhos Vedros, porque muitas destas pessoas foram já referenciadas nessas localidades, para se chegar a um número exacto, (ou aproximado), terá de se cruzar os nomes das pessoas nesta tabela referidas com as referidas naquelas freguesias.

Além destes também se fixaram na freguesia pessoas de muitas localidades, como; Bragança, Penafiel, Fronteira, Figueira da Foz, Tábua, Covilhã, São Gens do Coito, São Martinho de Dume, Portalegre, Cernache do Bom Jardim, Covões, Oliveira de Frades, Oliveira de Azeméis, Oliveira do Hospital, Mangualde, Monção, Alcobaça, Pedrogão Grande, Paião, Arganil, Porto de Mós, Monte Mor o Velho, Felgueiras, Marinha Grande, Celorico de Bastos, Sobral de Monte Agraço, Vieira do Minho, Miranda do Corvo, Tondela, Castelo Rodrigo, Guimarães, Trancoso, Idanha-a-Nova, Fundão, Mafra, Torres Vedras, Torres Novas, Abrantes, Alcanena, Sardoal, São Pedro do Sul, Góis, Figueiró dos Vinhos, Anadia, Caldas da Rainha, Monte Redondo, Cinfães, Lousã, Batalha, Seia, Arcozelo, Neves, Tomar, Ourém, Lafões, Avintes, Nelas, Soure, Cepães, Ferreira do Zêzere, Carregal do Sal, Pampilhosa, Águeda, Moncorvo, Mealhada, Ovar, Carvalhal, Molelos, para além de pessoas de todo o Ribatejo, Alentejo e Algarve.
Como se percebe as pessoas originárias da Beira Litoral são a maioria, mas vieram pessoas de todo o país.
Quanto à naturalidade destas pessoas acontece que muitas parecem não saber onde nasceram. Casam são naturais de uma localidade, baptizam um filho são naturais de outra e alguns chegam mesmo a ser naturais de três localidades diferentes.

Estas pessoas que chegaram a Palmela eram basicamente solteiros, embora também chegassem algumas já casadas nas suas terras de origem, assim também podemos elaborar as seguintes tabelas:

Naturalidade das pessoas que casaram com caramelos:
Moita                                       70
Sarilhos Grandes                    70
Alhos Vedros                           30
Setúbal                                      6
Azeitão                                       5
Aldeia Galega                            5
Misericórdia de Lisboa             41
Misericórdia de Coimbra          22
Misericórdia de Pombal             1
Misericórdia de Soure                2
Misericórdia de Souzel               2
Exposto de Coimbra                   2
Exposto de Lisboa                      1
Exposto do Porto                        1
Exposto de Oliveira de Azeméis 1
Exposto do Louriçal                    1
Exposto de Vila Real                  1

Origem e quantidade de casais que chegaram a Palmela:
Cadima        7
Tocha          7
Quiaios        6
Mira             6
Arazede       5
Penajoia      3
Cantanhede 2
Febres         2

Localidades de onde veio apenas um casal, são as seguintes; Ferreira-A-Nova, Covões, Alhadas, Cobelinhos, Carregal do Sal, Liceia, Paião, Santarém, Molelos, Alpiarça, Ovar, Mangualde, Carvalhal, Celorico da Beira, Oliveira do Hospital, Guarda e Sevilha (Espanha).

Verifica-se que muitas destas pessoas vivem maritalmente sendo solteiros, em especial nas décadas de setenta e oitenta, época de maior afluência de imigrantes. Sabemos porque quando baptizam os filhos são solteiros. Alguns quando casam baptizam vários filhos, outros por necessidade de legitimação dos filhos, outros ainda só resolvem casar à beira da morte, como o seguinte:

Aos vinte e cinco dias do mês de Março de
mil oitocentos e sessenta e nove pelas três ho-
ras da tarde no lugar da Carregueira desta
Freguesia de Palmela, Concelho de Setúbal
Diocese de Lisboa, sendo chamado para sacra-
mentar a Maria da Silva, solteira, filha legí-
tima de José Pereira e de Isabel da Silva, natu-
ral de Sarilhos, paroquiana desta de Palme-
la e moradora no dito lugar, por se achar gra-
vemente enferma e em perigo de vida ele me
declarou, extra conficionem, que tinha tido
contactos ilícitos com Joaquim Branco Pa-
gaime, também solteiro, trabalhador, natural
da Freguesia de Arazede do Bispado de Coim-
bra, filho legítimo de Manuel Branco Pa-
gaime, e de Maria da Cruz, e que dele já
tinha três crianças vivas, e que muito deseja-
va unir-se em matrimónio com ele dito,
Joaquim Branco Pagaime, e estando ele pre-
sente, e muitas outras pessoas, eu os intimei
para me declararem; se ambos eram solteiros
e se entre eles havia algum impedimento, e
tanto eles, como todos os circunstantes me decla-
rão não haver impedimento algum, e pergun-
tados ambos, e cada um de per si, se se queriam
unir em matrimónio, me responderam que
sim, e por isso seguidamente se receberam por
marido e mulher, e os uni em matrimónio
procedendo em todo este acto conforme o rito
da Santa Madre Igreja Católica Apostólica
Romana. Foram testemunhas presentes que sei
serem os próprios Francisco Jorge de Torres
sacristão desta Igreja, e muitas outras pes-
soas, homens e mulheres, todos do mesmo dito lugar.
E para constar lavrei o presente acento que comi-
go não assinaram. Era ut supra. O Prior
António José do Costado

Aos trinta e um dias do mês de Março de
mil oitocentos e sessenta e nove nesta Paro-
quial Igreja de Palmela, Concelho de Se-
túbal Diocese de Lisboa baptizei sole-
nemente a um indivíduo do sexo femeni-
no a quem dei o nome de Ana nascida às
dez horas da tarde do dia quatorze de Março
corrente, filha legítima de Joaquim Bran-
co Pagaima, trabalhador, natural da fregue-
sia de Arazede do Bispado de Coimbra e de
Maria da Silva, falecida, natural de Sarilhos
Paroquianos desta Freguesia de Palmela, e
moradores no lugar da Carregueira, neta pa-
terna de Manuel Francisco Pagaima e de Ma-
ria da Cruz, e materna, de José Pereira e de
Isabel Pereira. Foi padrinho Jorge de Mi-
randa, casado, fazendeiro, morador na Carregueira.
Madrinha tocou com prenda Maria
da Cruz, casada, moradora na vila da Moita que
dou fé serem os próprios. E para constar lavrei o
presente acento que assino. Era ut supra e
que os padrinhos não assinaram por não saberem
escrever. O Prior António José do Costado


Onde se fixaram
Estas pessoas tiveram dificuldades em se fixar, muitas nunca o conseguiram, por isso nesta tabela registo o primeiro local onde habitaram,

Venda do Alcaide    185
Fonte da Vaca         110
Carregueira               45
Pinhal Novo               40
Penteado                   35
Ólhos de Água           23
Terrim                        23     
Barra Cheia                17
Lagoinha                    15
Carrasqueira              14
Algeruz                       13
Hortas                        12
Cascalheira                12
Formas                       12
Palhota                        8
Vale da Vila                 8
Abreu                           8
Arraiados                     7
Vale de Marmelos       4
Batutes                        4

Na Lagoa da Palha habitaram quatro casais, pelo menos temporariamente, mas não consta desta relação porque não foi primeira opção como residência.



Note-se que este registo se refere à segunda metade do século XIX porque até aí os assentos não são explícitos. Também não contêm a totalidade das pessoas que viviam nestas localidades, como seja o caso de pessoas de apelido Valente na Barra Cheia ou Escumalha no Penteado, pois na segunda metade do século são todos já naturais de Palmela, Moita, Sarilhos Grandes ou Alhos Vedros.

Na Venda do Alcaide, até à década de sessenta do século XIX as pessoas que aí se fixaram eram de origem muito diversa. Desde as localidades vizinhas, sobretudo Setúbal, mas também do Alentejo e do Algarve e mesmo uma família de origem espanhola. Nas décadas de setenta e oitenta é exclusivamente caramela, mais os naturais dos concelhos de Palmela e Moita e outras localidades vizinhas e os sempre presentes expostos. Na última década voltaram a estabelecer-se nesta localidade pessoas de várias origens em especial do Ribatejo e de novo alentejanos e algarvios.

O Pinhal Novo não se enquadra no mesmo contexto dos outros locais da região. Aqui, apesar de se fixarem alguns caramelos, nunca foram a maioria da população. Desde logo as pessoas que trabalhavam nos caminhos-de-ferro, desde o chefe da estação ao guarda da linha ou do revisor ao factor, eram na maioria alentejanos e algarvios, assim como gente de Lisboa e de localidades vizinhas.
Da mesma forma a outra população, mesmo os trabalhadores agrícolas e fazendeiros são oriundos do Ribatejo, Alentejo e Algarve além dos locais e expostos, embora aqui também se fixassem os caramelos referidos na tabela.
Acresce que as características profissionais desta população são diversas do resto da zona caramela. Enquanto nos outros locais as pessoas são quase na totalidade trabalhadores agrícolas, fazendeiros ou proprietários, no Pinhal Novo surgem diversas actividades artesanais como funileiro, latoeiro, oleiro, cesteiro ou canastreiro, vários tipos de operários como serralheiro, fogueiro, pedreiro, carpinteiro como também relacionadas com o comércio como lojista, taberneiro, vendedor ambulante, negociante, caixeiro e barbeiro, ou outras profissões como cantoneiro, amassador ou telegrafista, e, como qualquer terra que se presasse também tinha o seu mendigo, sendo que nenhum é caramelo. São oriundos de diversas localidades do país nomeadamente de Lisboa, e uma família de origem francesa e várias de origem espanhola.
Na Palhota, embora também se fixassem alguns caramelos, a maioria era originário de outras regiões.
Lagameças, Lagoa da Palha e Valdera só surgem no final do século e aqui são raros os caramelos. Nestes locais o maior número e pessoas são naturais de localidades próximas como Setúbal, Canha, Alcácer do Sal ou mesmo Grândola e Torrão.
De Rio Frio temos apenas quatro assentos e são todos alentejanos.
Temos então que a dita região caramela, no sentido que lhe temos vindo a dar, ou seja, região colonizada por pessoas oriundas da Beira Litoral, começa na Barra Cheia e acaba na Fonte da Vaca. Aqui as relações familiares são mais fortes. Os caramelos casam com pessoas naturais da sua região, com naturais de Palmela e freguesias vizinhas ou com expostos, os seus filhos casam também com descendentes de outros caramelos, ou naturais das freguesias vizinhas ou expostos. Da Barra Cheia à Fonte da Vaca, passando pela Cascalheira, Carregueira e Abreu não entra pessoa de outra origem. O mesmo já não acontece no Penteado e no Terrim, apesar de serem locais maioritariamente caramelos, vão surgindo pessoas de outras regiões como algarvios e lisboetas.
A Lagoinha recebe alguns caramelos mas a população local é maioritária e recebe também pessoas de outras regiões para além de expostos de Lisboa.
Registe-se que estas pessoas vindas da Beira Litoral não se fixaram de forma uniforme por toda a freguesia. As regiões tradicionalmente agrícolas como Aires, Quinta do Anjo, Barris, Cabanas, Hortas, mesmo a região designada como baixa de Palmela não se fixou um só caramelo.

Actividade profissional
Profissionalmente, os homens são em geral trabalhadores, trabalhadores agrícolas, fazendeiros e proprietários, com algumas excepções como na Venda do Alcaide em que surgem pessoas empregadas nos caminhos-de-ferro, e noutras actividades como carpinteiro, cocheiro e vendedor ambulante. Também muitos dos homens que aqui se fixam são, quando casam, soldados, depois surgem como trabalhadores agrícolas ou fazendeiros.
Todavia a actividade destas pessoas era muito volátil, quer dizer que mudava constantemente. É comum um homem ser trabalhador agrícola, depois ser fazendeiro, depois proprietário, depois volta a ser fazendeiro e de novo trabalhador agrícola, depois de novo fazendeiro e volta a ser proprietário.
Menos comuns são indivíduos com a profissão de cocheiros e guardas campestres.
As mulheres são domésticas. Todas as mulheres casadas são domésticas. Em Palmela não se verifica, como por exemplo em Alhos Vedros, mulheres com a profissão de costureiras ou lavadeiras. Para confirmar a regra apenas três mulheres são proprietárias.
Já as mulheres solteiras ou viúvas, com filhos de pais incógnitos são jornaleiras, embora algumas também sejam domésticas.


Roda e incógnitos
Até à década de setenta do século XIX, as crianças cujos pais não queriam ou não podiam criá-los entregavam-nos na roda. Os assentos dão-nos várias referências sobre estas crianças e da forma como eram entregues. Deixar um filho na roda não significava necessariamente que os pais se quisessem livrar dos filhos definitivamente, alguns são entregues com determinadas roupas ou objectos que permitiriam aos pais identifica-lo e eventualmente recuperá-lo.
Depois desta data, com fim da roda, vão aumentar significativamente, (até aí muito raros), os filhos de pais incógnitos, de ambos ou só do pai ou só da mãe.
Curioso é o facto de estes assentos registarem o dia, hora e local de nascimento da criança, por vezes o nome da parteira que fez o parto e depois serem filhos de pais incógnitos. Muito mais curioso quando se trata de mãe incógnita. Se no assento são registados os pormenores do parto e de quem o fez, assim como o nome do pai torna-se impossível ignorar o nome da mãe.
Também o número de pais incógnitos vai aumentar. Só se conhece a mãe. Por toda a região caramela, e não só, vivem muitas mulheres solteiras, mas também viúvas, tanto caramelas, como naturais locais, como expostas, que têm filhos regularmente de pai incógnito.
Os filhos de mãe incógnita são em menor número, ainda assim eram mais que nas freguesias dos concelhos da Moita e Barreiro juntas, aqui são uma raridade, já em Palmela ultrapassa a dezena, considerando apenas a região que aqui designamos como caramela.
A importância desta população, filhos de pais ou mãe incógnitos e de expostos, é bastante numerosa, tanto na região caramela como no resto da freguesia, embora aqui seja mais significativa. Posso mesmo afirmar que não há família, de caramelos, onde não exista um exposto ou filho incógnito. Por isso as pessoas que hoje se dizem descendentes de caramelos, se consultarem a sua genealogia têm amplas probabilidades de acabar por bater com o nariz na parede, ou seja, concluírem que são descendentes de pais incógnitos ou de expostos, e se torna impossível verificar essa ascendência. E, como disse, não há família que escape a este imperativo.

Porque se fixaram
A imigração de caramelos para a região de Palmela e da Moita ocorre em dois momentos distintos. Para a Moita foi sobretudo nos anos trinta e quarenta do século XIX, enquanto em Palmela ocorreu sobretudo nas décadas de setenta e oitenta desse século. Verifica-se também que muitos destes imigrantes que vieram para a Moita se fixaram na própria vila enquanto na vila de Palmela foram raros.
Podemos constatar que por toda a região residem diversos caramelos, como sejam pessoas de apelido Carromeu, Balseiro ou Chula, entre outros, descendentes de pessoas que chegaram à Moita e a Sarilhos Grandes nas décadas de vinte e trinta do século XIX, envolvidos nas campanhas liberais, alguns fazem parte da milícia local, e por cá ficaram, casaram e fixaram-se e na segunda metade do século são os seus filhos, netos e bisnetos a colonizar boa parte da região da freguesia de Palmela que aqui designamos como caramela. Existem a viver por toda a região pessoas com os referidos apelidos, mas são já todos naturais de Palmela, Moita, Sarilhos ou Alhos Vedros. A este propósito veja-se, como exemplo, a família Caçoete:
Em 1841, João Gaspar Caçoete, natural de Ferreira, casa com Francisca da Silva, natural da Moita, e vivem na Fonte da Vaca. Tiveram vários filhos e filhas, alguns morreram ainda crianças. A partir da década de sessenta começam a casar os filhos:
Filipe, começa por baptizar uma criança filha de mãe incógnita, casa depois com Laurentina Vidal Valente, tiveram alguns filhos inclusive dois rapazes gémeos. Viviam em Sarilhos Grandes.
Joaquim que casa com Ana Jorge, tiveram vários filhos, tendo alguns morrido em crianças. Sete atingiram a idade adulta e casaram, só um homem e seis mulheres. Como as mulheres adquiriam os apelidos da mãe, temos que o Caçoete desapareceu, as filhas são todas de apelido Jorge. Acresce que para além dos filhos gostavam de ser padrinhos de crianças filhas de pais incógnitos. Moravam na Fonte da Vaca.
José, casa Joaquina de Oliveira, casamento que durou pouco por morte do dito José, mas ainda tiveram pelo menos uma filha, de nome idêntico à mãe, Joaquina de Oliveira, que por sua vez casa com José Jorge, natural da Tocha. Vivem na Venda do Alcaide. Note-se que o apelido Jorge passa a ser comum aos dois irmãos Caçoete.
António, casa com Maria de Jesus, terão pelo menos três filhos. Moram na Fonte da Vaca.
Vimos então que estes filhos de João Gaspar Caçoete e de Francisca da Silva, são todos naturais de Palmela, assim como os filhos dos seus filhos, ou seja os netos, que são adultos na década de oitenta e noventa, quando começam a surgir os seus registos de casamento e os registos de baptismo dos seus filhos, ou seja os bisnetos do João e da Francisca.
Por outro lado, aparece também uma Ana Rodrigues, casada com Augusto Marques, filha de José Gaspar Caçoete e de Teresa Rodrigues, que não aparecem em qualquer registo, e não é irmão nem filho do outro com o mesmo nome.
Para acabar a confusão temos também o registo de um Estanislau Caçoete, exposto da misericórdia de Lisboa.
Considerando então que João Gaspar Caçoete é caramelo, pois é natural da Beira Litoral, a sua mulher será? E os filhos serão meio caramelos, (a mãe é da Moita)? E os netos? Ou será que são Palmelenses como os outros?
Se verificarmos famílias com outros apelidos, menos comuns, (usando outros como Cruz, Jesus ou Santos, torna-se moroso por existem várias pessoas com esses apelidos e de várias origens), como Pagaime, Balseiro ou Coentro, o resultado é o mesmo, ou seja, na viragem do século XIX são netos e bisnetos, dos que chegaram nas primeiras décadas desse século e estão espalhados por toda a região.
Comum a todos é o analfabetismo, seja nos assentos de baptismo ou de casamento, ninguém sabe assinar, nem noivos nem pais nem padrinhos. Por outro lado as suas relações sociais são familiares e de vizinhança. Os padrinhos, de casamento ou de baptismo são familiares ou moradores da mesma localidade, por vezes o próprio sacristão. O mesmo não acontece em outras actividades, onde prevalecem as relações profissionais ou de amizade, por exemplo o médico é padrinho dos filhos do farmacêutico, o chefe da estação dos filhos do revisor, o negociante de Setúbal dos filhos do vendedor ambulante, ou de forma mais evidente proprietários moradores na rua Augusta ou na rua dos Fanqueiros em Lisboa, serem padrinhos de crianças de Sarilhos. Nestes não há relações familiares.



Para além das condições próprias das localidades de origem dessas pessoas, a Beira Litoral sofreu como nenhuma outra região do país com as guerras da primeira metade do século, que obrigaram as pessoas a deslocalizar-se para fugir às crueldades da guerra, a península de Setúbal não se verificaram as batalhas e manobras militares que nessa região ocorreram, nem os movimentos de guerrilha pós guerra civil. A península de Setúbal não era propícia a essa a esse tipo de actividade, sobretudo à guerrilha. Apenas um palmelense é referido como vítima dessa actividade guerrilheira que é o seguinte:

Em um do mês de Março de 1833 foi
achado morto no sítio do Montinho, Bernardino
Freire, casado com Ana Joaquina, morador nesta freguesia e
consta que fora fuzilado pelas guerrilhas Realistas, que estavam
em Alcácer, e foi ali mesmo sepultado, de que fiz esta lembrança.
O Prior Caetano José Lucas


Na colonização da região caramela de Palmela não é estranha a construção do caminho-de-ferro. É ao longo do percurso do caminho-de-ferro, Barreiro / Pinhal Novo e depois Pinhal Novo / Vendas Novas e Pinhal Novo / Setúbal que a colonização será mais intensa. Também porque muitas pessoas perspectivavam uma actividade ligada á indústria e aos serviços, e os agricultores a possibilidade de colocar os seus produtos no mercado.
Por outro lado, está mal estudado o modo como estas pessoas se fixaram. Na Moita sabemos que os primeiros caramelos se estabeleceram ainda no final do século XVIII, devido a uma opção política da Câmara que visava desenvolver e potenciar algumas zonas, até aí inadequadas à prática da agricultura, aforando terrenos municipais, como por exemplo nos Brejos, e noutros locais arroteando terras de potencial cultivo, Arroteias da Moita, Arroteis de Alhos Vedros, Arroteias de Sarilhos. Em Palmela é diferente porque essa colonização é feita sobretudo na segunda metade do século XIX e a própria freguesia é economicamente de base agrícola. Note-se que em 1833, por ocasião das mortandades provocadas pela cólera, as localidades referidas são as tradicionais de economia agrícola, Barris, Cabanas, Quinta do Anjo. Nesta data as localidades que hoje designamos caramelas nem eram consideradas.
Também mal estudado está a forma como essas pessoas adquiriram propriedades. Se na Moita é possível terem sido adquiridas como prémio pela sua participação nas guerras liberais, (os miguelistas foram em regra expropriados, como é exemplo Ferreira Chaves), ou adquiridos em leilões públicos por preços simbólicos, já em Palmela é improvável que assim tenha acontecido pois estamos temporalmente longe desses acontecimentos.
Os arquivos das Câmaras Municipais podem esclarecer estes assuntos, caso ainda existam.
Da mesma forma, ainda não estudados, e convinha esclarecer, é a evolução em termos quantitativos destas propriedades agrícolas e da sua dimensão, assim como os tipos de culturas e quantidades de produção. Também aqui os arquivos locais poderão esclarecer com alguma facilidade.
Para perceber a dimensão e importância do fenómeno caramelo é ainda básico perceber qual a sua percentagem no conjunto geral da população destes concelhos.
Também era curioso saber quais as condições de vida desta população, o que bastava confrontar o número total de moradores com o número total de prédios urbanos, o que também é relativamente fácil de obter. Mas não serão necessárias muitas contas para afirmar que havia mais casais que casas, ou seja, muitos não habitavam naquilo a que hoje chamamos casas, mesmo que humildes.
Neste como nos temas acima referidos o seu estudo (estou convicto) dará informações que irão surpreender por divergirem dos conceitos populares.
Como disse, estes e eventualmente outros assuntos serão facilmente desmontados pela consulta dos arquivos municipais.
Na segunda metade do século, com a estabilização geral do país em termos militares, Palmela seria uma terra atractiva pela disponibilidade de terrenos e pela perspectiva de progresso que os novos meios de comunicação proporcionavam.
Devemos ainda considerar toda a legislação sobre a actividade agrícola que desde a revolução liberal foi sendo promulgada, desde logo a abolição dos foros e da lei Mental, que permitiu libertar muitos terrenos e dividir as propriedades, sendo todos os filhos herdeiros em partes iguais.

Pobreza
Esta população caramela é maioritariamente muito pobre o que também acontece com o resto da população da freguesia. A afirmação constata-se quando as pessoas morrem, onde em geral são enterrados no adro da igreja ou vão para a vala comum porque não podem pagar o “coval”. Dentro da igreja é só para quem pode pagar e o uso de caixão só vai acontecer no século XX.
O mesmo relativamente aos testamentos, esta população não faz testamentos porque “não tem de quê”.
A afirmação é ainda confirmada nos assentos de baptismo onde boa parte desta população não paga porque é “pobre”. Algumas crianças, identificadas como “espúrios” são baptizadas por caridade.
A pobreza não é exclusiva do trabalhador, também muitos fazendeiros não pagam o baptismo dos filhos por serem pobres. Nem é exclusivo dos caramelos, a pobreza atinge toda a população.
Da mesma forma haveria muitos remediados e alguns ricos, estes sobretudo proprietários. Também neste aspecto os arquivos locais esclarecem, todas as Câmaras Municipais fazem listagens com os maiores contribuintes dos respectivos concelhos, onde podemos confrontar a importância económica destas pessoas no contexto geral. Embora sem o rigor estatístico necessário, uma visita aos cemitérios da região também nos dão ideia da dimensão da riqueza destas comunidades e da forma ou actividade económica como essa riqueza foi obtida (para além de aspectos culturais e de mentalidade). Verifica-se por exemplo fortes ligações maçónicas nos mais ricos destas comunidades.

Mobilidade
Em Palmela, devido à dimensão da freguesia, torna-se evidente (o que na Moita era apenas suspeita) que esta população teve dificuldades em se fixar.
Constata-se que um casal quando casa mora num local, baptiza um filho vive noutro, baptiza segundo filho já habita noutro. Se baptiza três, quatro ou mais filhos vai alterando o local de residência.
Houve casais que ao longo da vida habitaram em todos os locais da freguesia nunca se fixando.
Verifica-se também que entre a população caramela que casou em Palmela, cerca de 180 casais não surgem depois a baptizar os filhos. Casam e não aparecem mais, o que pode significar que um ambos os membros do casal morreram, (várias crianças ao serem baptizadas já são órfãs de pai e mãe), ou um ou ambos serem inférteis ou ainda por mudarem de local de residência, tanto para as freguesias vizinhas, (por isso muitas pessoas referenciadas em Palmela surgem também na Moita, Alhos Vedros ou Sarilhos), ou mesmo para o estrangeiro, (como para o Brasil, onde pessoas de apelido Coentro, por exemplo, procuram aqui as suas ascendências).
Sabemos que milhares de pessoas abandonaram o país no final do século XIX, nomeadamente para a América do Sul, existem descrições de situações verdadeiramente dramáticas mas não temos relações dessa emigração de Palmela nem da península de Setúbal. Também neste aspecto, pela documentação que vai sendo disponibilizada pelos novos meios tecnológicos, cada vez mais pessoas vão trabalhando esses assuntos e estão sempre a surgir novidades. Que na Moita algumas pessoas solicitaram autorização para emigrar está documentado, mas sobre Palmela desconheço.

Apelidos
Pela análise destes assentos paroquiais também se verifica que apelidos como Marto, Amaro, Coentro, Caçoete, Sargaço, Margarido e outros, apelidos que surgem como pessoas oriundas da Beira Litoral, são também apelidos de pessoas cuja naturalidade é; exposto da misericórdia de Lisboa. Eventualmente porque foram criados por, (ou com), famílias com esses apelidos, e por isso os adquiriram. O certo é que os seus descendentes os adquiriram.
Da mesma forma apelidos como Botas, Simplício, Valente e outros, referidos como oriundos da Beira Litoral, são também apelidos que já existiam na região desde o século XVIII.
Assim, as pessoas que hoje têm estes apelidos, não significa que sejam necessariamente descendentes de caramelos. Podem ser… ou não.
Se com os apelidos referidos só uma análise pormenorizada permite concluir se as pessoas em causa são descendentes dos primeiros colonos originários da Beira Litoral, noutros como Silva, Costa, Cruz, Jesus, Santos, etc, etc, devido ao facto de serem mais vulgares, a confusão é tanta que só uma listagem geral de casamentos e baptizados permitiriam esclarecer.

Curiosidades
Como curiosidade informo que José Gonçalves Amaro casou quatro vezes, a última das quais com setenta anos, e no ano seguinte baptizou mais um filho.
Também como curiosidade refira-se que o casal Eusébio de Pinho, natural de Mira / Rosa Maria, natural da Moita, foram eventualmente o mais fértil, baptizaram o primeiro em 1877 e em 1902 continuavam a sua actividade reprodutiva. Tiveram seguramente uma dúzia de filhos.

Conclusão

Parece-me evidente que a população dita caramela que se fixou em Palmela foi numerosa, e por isso a mais importante para o desenvolvimento económico e social de toda a região que até essa época não era explorada em termos agrícolas. Todavia não devemos ignorar a população oriunda do resto do país. Se em determinada altura os caramelos teriam sido eventualmente maioritários, seria em curtos lapsos de tempo. Palmela tem, do ponto de vista demográfico as mesmas características do resto da península de Setúbal, ou seja, a população moradora no concelho, desde o final do século XIX é maioritariamente constituída por pessoas não naturais de Palmela, devido ao constante movimento migratório para esta região. Ainda hoje a maioria da população residente não é natural de Palmela. Vive cá mas… não é de cá.