sábado, 7 de março de 2015

Morrer na Moita. comentário

Morrer na Moita: comentário
Introdução
Este trabalho foi realizado com base nos livros paroquiais do concelho da Moita, em particular dos assentos de óbitos, e em diversa documentação recolhida nos arquivos locais.
Não tem por objectivo elaborar qualquer tese sobre morte nem sobre a mentalidade ou cultura subjacente às práticas fúnebres e religiosas da época.
Pretende-se simplesmente dar a conhecer, em especial aos moitenses, um pouco da sua história e fornecer algumas informações sobre a vida (e a morte) nesta vila e no concelho.
É, portanto, um trabalho informativo, sem pretensões académicas ou científicas, mas, com o rigor histórico e o suporte documental exigível.

Infância
Relativamente aos óbitos na Moita, ressalta desde logo a elevada mortalidade infantil, que aliás, é generalizada. É impossível efectuar estatísticas sobre este assunto pois bastantes pessoas, ao sentirem-se doentes procuram tratamento no hospital de S. José em Lisboa e lá acabam por falecer, não entrando por isso nos registos locais. Sabemos que seriam bastantes os moradores da Moita a recorrerem a este hospital pois as verbas pelos serviços prestados eram remetidas para cobrança à Câmara Municipal e foram registadas nos livros de contas. Eram verbas elevadas que chegavam a largas dezenas de milhares de reis, em alguns anos atingiam mesmo as centenas.
Constata-se que se tratava de um problema grave. Verifica-se pelo número de crianças exposta na Roda, que na Moita ficava numa das últimas casas da rua de Palmela, eventualmente para possibilitar a descrição necessária.
A Câmara pagava a rodeira e as amas que criavam essas crianças e cujos nomes são referidos nos documentos. Contudo não se tratava de nenhum acto de caridade, pelo contrário. A Câmara cobrava um imposto destinado especificamente ao apoio aos órfãos e aos expostos, verba que entrava no chamado cofre dos órfãos e tinha administração própria com juiz, escrivão e outros funcionários. Dessas verbas nem dez por cento era utilizado para os fins a que se destinava. Sempre que a Câmara tinha problemas financeiros, e eram constantes, para efectuar obras, pagar a fornecedores ou a funcionários, retirava o dinheiro do dito cofre dos órfãos, que, como é óbvio, nunca voltava a repor.
Não temos registos específicos, mas pelo número de óbitos que se verificavam, identificados nos assentos de óbitos, e pelos de casamento, em que as pessoas eram identificadas, que muito poucas dessa crianças deixadas na roda chegariam à idade adulta. Talvez por isso a Câmara determinou que as amas só fossem pagas depois do Facultativo Municipal (Delegado de Saúde) consultar as crianças e atestar que estão bem tratadas e de saúde. A medida, embora louvável, parece ter produzido fracos efeitos. É uma situação onde parece que as amas estão mais interessadas nas verbas que recebem do que em cuidar das crianças que lhe foram entregues. Por isso, ou talvez por isso, surgem neste período bastantes crianças abandonadas à porta das pessoas mais ricas, (o que sabemos pelos registos de baptismo), pois assim a mãe que deixa o filho, acredita que sendo criado por essas pessoas será melhor tratado.
É possível também aquilatar a gravidade da situação pelos pedidos de subsídio feitos à Câmara para criar crianças, sempre pela mesma razão, a miséria dos pais, que era, aliás quase geral.
Se o abandono de crianças era uma praga, ainda assim surgem casos, embora raros e espaçados no tempo, de casais que procuram intencionalmente adoptar crianças, eventualmente devido a problemas de infertilidade, visto que esses casais nunca surgem a baptizar filhos próprios.
Outro factor potenciador da elevada mortalidade infantil, já na época diagnosticado pelos médicos, nomeadamente pelo doutor Silva Evaristo, ao referir as péssimas condições higiénicas em que as pessoas viviam e que só na viragem do século XIX a Câmara começou a dedicar alguma atenção, começando a fazer a limpeza das ruas, a legislar contra as práticas em uso de abandonar imundices em locais públicos ou de circular e criar animais nas ruas da vila, entre outros. Elucidativo foi a morte de duas crianças da escola primária atribuídas ao facto desta estar situada perto do porto da lama, (porto da merda, pois era disso mesmo que se tratava). Inclusive a própria professora chegou a queixar-se à Câmara que devido aos odores nauseabundos exalados do dito porto, adoeceu, estando vários dias e por várias vezes com náuseas e vómitos.
Por último a mortalidade relacionada com o parto. Muitos são os casos de mulheres e seus filhos que morrem durante o parto. Outros haverá que não sendo possível detectar imediatamente pois a mãe, não morrendo durante o parto, acabava por morrer alguns dias ou semanas depois devido a causas relacionadas com o parto.

Acidentes
Relevante para a mortalidade local é a morte por afogamento.
Morrem pessoas afogadas nas marinhas, nas caldeiras dos moinhos, nos charcos, e nos poços, eventualmente ocasionais, mas também, e em elevado número, que caem acidentalmente à água ou aparecem mortos a boiar no Tejo e são trazidos para terra pelos marítimos locais, ou simplesmente aparecem mortos nas praias. Sabemos também por outras fontes que muitos moitenses, acidentados nos barcos não surgem nos registos locais porque esses acidentes se deram noutros locais, nomeadamente em Lisboa.
Também a actividade marítima local regista óbitos por acidente, concretamente de duas maneiras; ou o acidentado caiu da verga ou a verga caiu-lhe em cima.
Morrem ainda pessoas vítimas de tiros, alguns presumivelmente acidentais, outros vítimas de crime ou devido a desacatos. Da mesma forma são referidas pessoas que morrem na sequência de facadas e de pauladas.
Com a chegada do comboio começa também os acidentes relacionados com esta actividade. Ou caem do comboio ou são apanhados pela máquina ou ainda por descuido são trucidados pela composição.

Doenças
É óbvio que o principal factor para a mortalidade é a doença. Os registos só em curtos espaços de tempo informam o tipo de doença eventual causa imediata da morte.
As doenças registadas mais comuns seriam: tísica, moléstia, hidrofisia, malina, apoplexia, anginas, bexigas, pneumonia, varíola, hemorragia cerebral, meningite, gripe, tétano, tuberculose, estupor, perniciosa, cólera, moléstia de peito, moléstia de deitar sangue pela boca.
As crises epidémicas eram também frequentes. Doenças contagiosas matavam famílias inteiras ou várias, na mesma rua, com pouco tempo de intervalo entre elas. Particularmente as crianças eram as mais afectadas. Vários casos de seis, oito ou dez crianças, por vezes vários irmãos ou vizinhos morriam em poucos dias.
Neste particular refira-se o ano de 1833, em que a epidemia de cólera matou três a quatro vezes mais pessoas do que em ano normal. Apesar de alguns historiadores afirmarem que esta epidemia quase extinguiu a população, trata-se de um manifesto exagero. Até porque a população foi imediatamente reposta por gentes oriundas de outras regiões do país.
Não deve ser, apesar disso, menosprezada, até porque, no caso da Moita, e das freguesias vizinhas esta epidemia foi particularmente dura. As pessoas começavam por se sentir indispostas, seguido de vómitos e num ou dois dias morriam. Também aqui não é possível obter contas exactas, pois o padre desistiu de fazer os respectivos assentos, fosse devido à quantidade de óbitos fosse pelo medo de contágio. Só depois de passada a maior intensidade da crise, nos meses de Abril a Julho, o Vigário Geral ordenou ao padre local que registasse todos os nomes de que se lembrava, determinando que fizesse todas as diligências possíveis para saber quem tinha morrido, o que ele fez, deixando uma lista com o nome de cerca de cinquenta pessoas sem outra qualquer referência.
Mas é certo que não registou todos. Até 1850 vão surgindo pessoas a solicitar certidões do assento de óbito dos seus familiares. A última referida está datada de 22-11-1850 e é de tal forma elucidativa que sem qualquer comentário passo a transcrever:
Diz Mariana da Luz, casada com Alexandre Lino, ausente neste Reino, que pelo documento junto mostra ter tido um filho por nome Francisco. O qual faleceu na vila da Moita no ano de 1833 na ocasião das moléstias por motivo das quais não se lavrou o óbito do falecimento do dito seu filho; bem como de outras pessoas que faleceram naquela época.
Nesta síntese referência ainda para bastantes pessoas que estando doentes viajam de diversas localidades do sul do país, com destino ao hospital de S. José em Lisboa, acabando por morrer na Moita, tanto no barco da carreira como no próprio cais. Depois será no comboio, chegando este a deixar cadáveres de indivíduos que entretanto tinham falecido na viagem.

Onde se morre
Como se pode verificar pelos casos que transcrevi em “Morrer na Moita: curiosidades” e fazem parte documental deste trabalho, morre-se em todos os locais do concelho, sejam públicos ou privados. Nas vinhas e nas hortas, nas palhotas e nos becos, nas estalagens ou no meio das ruas e largos, na estação dos caminhos-de-ferro ou na cadeia.
No caso dos mendigos, morrem mais ou menos abandonados e em situação de extrema penúria. Ao tempo, todo o indivíduo do povo, homem ou mulher, chegando a idade de não conseguir trabalhar, ou com qualquer idade sendo deficiente, a única forma de sustento era a mendicidade, vivendo do “amor dos fiéis”.
Surgem também em número significativo pessoas que aparecem mortas na casinha dos pobres, como é referida no início do século XVIII, mais tarde referida como “a casa onde os pobres se recolhem”, posteriormente como auspício e ainda como hospital, referindo-se sempre ao mesmo local, eventualmente melhorado e restaurado, levando inclusive a que em localidades vizinhas a ser pelidada como misericórdia da Moita. Este estabelecimento estaria situado na rua da Estação, travessa da Pinta, fronteira ao largo Conde Ferreira.
Como se morria em todos os locais do concelho é possível fazer uma relação, assim temos, na vila: ruas; do Cais, das Canas, da Praia, do Porto, Direita, do Arneiro, do largo do Poço, da Praça, da Fábrica, da Azinhaga, de S. Sebastião, de S. António, do Poço, de Palmela, de Setúbal, nova de Palmela, Direita da Igreja, da Estação ou dos Caminhos-de- Ferro, do Rosário, do Arrabalde, do Paço, Conde Ferreira, da Praça de Touros, do Matadouro, dos Fornos de Cal. Travessas do Félix, do Barbosa, do Ministro, do Possinho, da Praça de Touros, dos Ferreiros, da Palmeira, do Cipriano, da Quinta, Travessa Nova, do Cais, da Piedade, do Espanhol.
Largos, das Flores, do Bica, do Arneiro, de S. Francisco de Paula, do Príncipe Dom Carlos, do Capitão-mor, da escola Conde Ferreira, do Poço, do Poço das Bravas, da Igreja, da Praia, de Manuel da Costa, da Pinta, do Cais, da Madre de Deus, da Praça de Touros, da Caldeira, de Joaquim Tomás, do Alferes.
Ainda o Canto do Joaquim Tomás, os pátios de José Ferreira, do Cordoeiro, do José Martinho e do José Ratinho.
Fora da vila temos: Sarilhos, Rosário, Broega, Brejos, Carvalhinho, S. Sebastião, Barra Cheia, Arroteias, Chão Duro, Alto do Rosário, Alto da Moita, Esteiro Furado, Gaio, Pinhal da Areia, Alto da Malhada, Brejos de Água Doce, quinta da Ponte do Caia, sítio da Cruz das Almas, sítio do Palheirão, Alto do Pontão, Fazenda do Cordoeiro, quinta de Santa Rosa, sítio da Horta, quinta dos Fundilhões, sítio da Bela Vista, sítio da Quintinha, quinta de S. Domingos, sítio das Caldeiras, sítio do Moinho Novo, Arroteia do Ratão, Arroteias de Sarilhos, Abreu Pequeno, Abreu Grande, Quinta da Freira, Calcanhar, Casal da Fonte da Areia e Bairro Costa.

Locais de enterro
No concelho da Moita os enterros são efectuados em diversos locais, até à interdição de os fazer nas igrejas.
Destaque para a igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, tanto no interior como no adro, nas capelas de S. Sebastião, do Rosário e de Sarilhos, também tanto no interior como no adro. Com a proibição dos enterros nestes locais a Câmara constrói um cemitério, que não sei precisar o local, mas ficaria perto do Porto, e depois, por motivos que a documentação que tive acesso não esclarece, transferiu-o para as traseiras da igreja. A documentação dos arquivos locais decerto fará luz sobre o assunto.
No final do século é construído o cemitério no Alto de S: Sebastião, cujas peripécias da sua inauguração e bem assim o regulamento pode consultar neste blogue. Refira-se ainda que existem pessoas sepultadas em vários locais, nomeadamente nas praias do Rosário e de Sarilhos, porque eram encontradas em adiantado estado de decomposição, e, então, eram enterrados no próprio local em que eram encontrados.
Dentro do espaço das igrejas, (até à construção dos cemitérios) uns eram sepultados outros enterrados, o que além de ser uma questão de diferenciação social era também uma questão de localização.
Assim, os padres tinham a sepultura eclesiástica, em local junto do altar principal. As pessoas de maior estatuto social e económico eram sepultadas dentro da igreja em jazigos de família e em locais privilegiados relativamente às eventuais benesses divinas. Os membros das confrarias e irmandades tinham covais próprios. O conjunto do povo ou tinha dinheiro e era enterrado no adro com alguma dignidade, ou sendo miserável era enterrado “por caridade” e ia para o “cemitério” ou seja a vala comum.
Da mesma forma relativamente ao tipo de enterro. A forma como as pessoas eram sepultadas também variava. A grande maioria era de “corpo à terra”, alguns poucos de caixão e raros em jazigo.
Também as cerimónias públicas eram variadas, sendo a maioria enterrada sem qualquer ritual. Uma pequena minoria é acompanhada pelos cerimoniais religiosos que vão da simples missa ao acompanhamento fúnebre com procissão, dependendo das quantias monetárias que a família do defunto, ou o próprio por testamento tivesse disponível para gastar.
Comum era o facto de o padre registar no assento de óbito se o falecido tinha, ou não, feito testamento. A maioria das pessoas não o fazia “porque não tinha de quê”. Os que o faziam deixavam determinadas quantias, ou bens, destinadas a missas por sua alma e de seus familiares. Em alguns casos o testamento é feito “vocalmente”, ou seja, era aquilo que o sacerdote atestava que o falecido tinha estabelecido, à hora da morte, sendo apenas o próprio sacerdote testemunha do testamento.

Apelidos e alcunhas

Na relação dos óbitos inseridos no artigo “Morrer na Moita; curiosidades”, vão referidos um número significativo de apelidos e alcunhas, todavia o seu número total tornaria a dita relação demasiado longa e sem particular interesse. Por isso, e apenas por curiosidade, aqui deixo os apelidos e alcunhas que detectei, muitas de pessoas bem conhecidas na Moita, alguns dos quais meus amigos: Preta, Preto, Balceiro, Calafate, Calote, Calhau, Caramelo, Mexilhoca, Castelhaninho, Machoqueiro, Freira, Proença, Ruivo, Delgadinho, Outeiro, Patronilho, Balim, Barritier, Lagartixa, Gago, Canhoto, Sustancia, Marão, Trabalhador, Algarvio, Carranquinha, Forneiro, Carpinteirinho, Cassoa, Emaus, Marram, Marítimo, Moleiro, Cota, Desgarrada, Ratinho, Pepe, Ramelas, Arrepia, Feio, Casado, Branquinho, Mulata, Corista, Russiano, Buchas, Santa Marta, Manica, Ilhéu, Pascoal, Margarido, Papa Bolos, Cigano, Libério, Cainé, Bagante, Lasca, Chaves, Roquete, Santinho, Fatia, Cantante, Manço, Castanheida, Marinheiro, Cazequinha, Manique, Faquinha, Fraqueira, Abra, Preguiça, Negrão, Casa Branca, Cadete, Camarinho, Pena Guião, Vendeiro, Sardo, Polido, Bexiga, Papada, Marateca, Ferrinho, Páscoa, Balravento, Rolo, Minhoto, Rebolo, Palhaço, Dorça, Pitangas, Novo, Velho, Sem Juízo, Cachamão, Prestes, Não Perca, Marinhenga, Catarrinho, Espanhol, Tapisso, Moscardo, Bonita, Peixeiro, Pimpão, Borda d’ Água, Barriga, Marto, Patronilha, Alcobaça, Carromeu, Beiroa, Mouco, Ratão, Avoa, Argau, Formas, Terras, Rego, Cabau, Farinha, Catina, Magina, Tilha, Regra, Cantarino, Ramalheiro, Boa Viagem, Gamboa, Talhadas, Carona, Bronze, Rasmalho, Brinca, Menina, Cartaxo, Buxa, Vareiro, Carraça, Faim, Bife, Mena, Reimão, Corgeiro, Fetinhas, Feiteira, Campante, Cobélos, Alegria, Espada, Quitério, Sereno, Pataco, Carabineiro, Raposeiro, Casaca, Ferro, Carrapeto, Cruzado, Canas, Barreto, Condinho, Escumalha, Pitanças, Seco, Catarro, Cachucho, Arrábida, Doirado, Chaves, Miquelino, Rufino, Nora, Saragaço, Bonjour, Broega, Fábrica, Tosquiador, Lé, Ucha, Frade, Moço, Lapuz, Cantanhede, Ferelume, Murilhas, Lomba, Amieiro, Carregosa, Carregal.

3 comentários:

  1. Ao ler este texto voltou-me a curiosidade de saber a localização de ruas que, entretanto mudaram de nome, como por exemplo o Largo do Arneiro. Nem a Junta de freguesia, com muito boa vontade, nem a Câmara me conseguiu ajudar.

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  2. Arneiro significa areal, sítio de muita areia. E aparece por vezes associado a vários locais. Na que refere o texto, penso que ficaria junto ao moinho do Alimo, onde hoje é o lar Abrigo do Tejo ou onde está o canil e que alguns dizem ser o porto da lama, antes do local ser entulhado.

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