terça-feira, 14 de agosto de 2018

Escravos na Península de Setúbal. Depois de 1750.


Escravos na Península de Setúbal
depois de 1750
Introdução
Pela leitura dos livros paroquiais, relativos às freguesias da península de Setúbal, deparamo-nos constantemente com indivíduos na condição de escravos, dispersos no tempo e em todas as freguesias.
Sabemos que desde o século XV, este flagelo foi constante, por razões rácicas ou religiosas são muitos os testemunhos que evidenciam a crueldade a que estas pessoas foram sujeitas, assim como a violência da estupidez ideológica que a fundamentava.
Os acentos paroquiais são quase estéreis sobre este aspecto, embora possamos tirar algumas conclusões sobre a vida destas pessoas.
Relação de escravos
Alcochete.
13 homens.
28 mulheres.
(7 são casais).
Proprietários 25. (4 são padres).
Não referidos como escravos;
7 homens pretos.
1 preto fugido.
1 homem pardo.
1 mulher parda.
Coina.
2 mulheres.
3 menores.
Proprietários 1. (militar).
Não referidos como escravos;
1 homem pardo.
Barreiro.
2 homens.
10 mulheres.
2 casais.
9 menores.
Proprietários 12. (1 pescador, 1 militar,1 padre).
1 casal de pretos forros.
Lavradio.
6 homens.
9 mulheres.
5 menores.
Proprietários 12. (3 nobres, 1 militar).
Amora.
1 homens.
4 mulheres.
1 casal.
2 menores.
Proprietários 6. (1 padre).
Arrentela.
7 homens.
8 mulheres.
1 escrava parda.
4 menores.
Proprietários 7. (1 militar, 1 padre).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 preto forro.
1 pardo.
1 preta.
Azeitão. São Lourenço.
9 mulheres.
Proprietários 7. (1 militar, 1 nobre).
Não referidos como escravos;
4 homens pretos.
2 mulheres pretas.
1 mulatinha.
Azeitão. São Simão.
3 homens.
6 mulheres.
3 menores.
Proprietários 9. (1 militar).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 preto, viúvo, mendigo, de 70 anos de idade, mais ou menos.
1 preta, solteira.
1 preta.
1 mulato, casado.
1 parda, solteira, criada.
1 preta, livre.
1 homem.
Proprietário 1.
Caparica.
15 homens.
28 mulheres.
13 menores.
Proprietários 35. (1 militar, 1 padre).
Seixal.
5 homens.
9 mulheres.
2 menores.
Proprietários 7. (1 militar, 1 doutor).
Não referidos como escravos, ou livres;
2 pretos forros.
1 homem preto.
1 casal de pardos.
1 preta, viúva.
Corroios.
3 homens.
3 mulheres.
2 menores.
Proprietários 5.
Moita.
7 homens.
7 mulheres.
1 menor.
Proprietários 13. (1 militar, 1 Juiz de Fora, 1 doutor, 1 estalajadeiro, 1 cabeleireiro).
Não referidos como escravos;
1 preto.
1 preta.
1 parda.
1 parda, criada.
1 casal de pardos.
1 homem pardo.
1 preto e muito velho.
1 preto muito velho e mendicante.
1 preta, criada.
1 pretinha que criava a mulher de João Francisco.
Alhos Vedros.
2 homens.
9 mulheres.
4 menores.
Proprietários 9. (1 padre).
1 preto, não se sabe se era forro ou cativo.
Sarilhos.
Não referidos como escravos;
1 homem preto.
1 homem pardo.
Marateca.
1 homem.
2 mulheres.
Proprietários 2. (1 padre)
Não referido como escravo;
1 homem preto.
Palmela. São Pedro.
10 homens.
18 mulheres.
13 menores.
Proprietários 22. (3 padres, 2 militares, 1 doutor).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 preta, solteira e livre.
3 homens pretos.
1 mulher preta.
1 preto, casado.
3 mulheres pardas.
1 homem pardo.
1 preto enjeitado.
1 preta enjeitada.
Palmela. Santa Maria.
9 homens.
17 mulheres.
8 menores.
Proprietários 23. (4 padres, 3 militares, 1 doutor).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 preta forra.
4 homens pardos.
4 mulheres pardas.
1 preta enjeitada.
3 casais de pretos.
Montijo.
13 homens.
31 mulheres.
5 menores.
Proprietários 35.
Não referidos como escravos, ou livres;
1 escravo forro.
1 mulher forra.
1 homem preto.
1 mulher parda.
1 mulato.
1 mulata.
Setúbal. São Julião.
20 homens.
63 mulheres.
12 menores.
Proprietários 80. (5 padres, 5 doutores, 4 militares).
1 Não referidos como escravos, ou livres.
1 preta que deixou livre o padre.
1 casal de pretos.
4 mulheres pardas.
3 mulheres pretas.
1 homem pardo.
1 preta, solteira.
1 preta assistente na Rua Direita.
Setúbal. Nossa Senhora da Graça.
1 homem.
11 mulheres.
10 menores.
Proprietários 12. (1 padre, 1 militar).
Não referidos como escravos, ou livres.
5 pretas forras.
1 preto, pedido o seu nome nunca o deu.
Setúbal. Nossa Senhora da Anunciada.
6 homens.
10 mulheres.
2 menores.
Proprietários 14. (2 padres, 1 doutor).
Setúbal. São Sebastião.
32 mulheres.
5 menores.
Proprietários 33. (2 padres, 2 militares, 1 doutor, 1 carpinteiro de barcos).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 casal de pretos forros.
1 casal de pretos.
4 mulheres pretas.
1 homem pardo.
Sesimbra. São Tiago.
18 homens.
30 mulheres.
10 menores
Proprietários 24. (3 militares, 1 padre, 2 funcionários, 2 nobres, 1 doutor).
Não referidos como escravos, ou livres;
1 mulata forra.
1 parda,viúva e forra.
1 preta forra.
1 deitada dentro de poço, dizem ter enlouquecido.
1 escrava viúva.
1 preto que nunca se soube de quem era filho.
1 escravo natural de Viseu.
Sesimbra. Castelo.
2 homens.
4 mulheres.
1 menor.
Proprietários 4. (2 nobres, 1 militar, 1 padre).
Não referidos como escravos;
1 menor filho de Diogo, homem pardo, e de sua mulher Maria.
1 homem pardo.
2 menores escravas.
Total:
168 homens.
274 mulheres.
114 menores.
Origem
Na quase totalidade dos escravos referenciados, o acento não esclarece sobre a origem ou naturalidade desse escravo. São poucos os casos em que a naturalidade é referida, e, muitas vezes é mesmo afirmado o desconhecimento, e também de pais.
Os poucos acentos em que é identificada a origem ou naturalidade do escravo, referem de forma genérica a Angola, ou, por vezes, Benguela. Alguns, poucos, referem Cacheu.
Alguns serão oriundos do Brasil, surge um indivíduo de Pernambuco, outro Rio de Janeiro e ainda outro de Minas Gerais.
Numa das situações o escravo é natural de Viseu.
Também se pode entender esta situação com o facto de, eventualmente, a maioria destes escravos ter já nascido em Portugal.
Surgem também indivíduos de quem nada se sabe. Não só a nacionalidade, como paternidade, como até se são escravos, ou livres, e mesmo alguns que recusam identificar-se.
Em vários acentos dizem apenas que é um inocente, escravo, mas não identificam, nem o escravo nem a mãe.
Absolutamente espantoso é o facto de um escravo na freguesia do Lavradio ser preto de “nascença”.
Situação Social
A situação social e económica do escravo não seria muito diferente do conjunto das pessoas de condição social mais baixa.
A situação de homens vagos ou vagabundos, homens de ganhar, criados e criadas, moço e moças, mariola, caramelo, maltes, não seria muito diferente do escravo, eventualmente seriam até socialmente mais vulneráveis. Se, relativamente ao escravo, o esclavagista, o tenta manter e alimentar, nem que seja para não perder o investimento, já em relação ao conjunto dos outros indivíduos, teoricamente trabalhadores livres, está isento dessa obrigação, nada tem a perder, tem sempre mão-de-obra disponível no caso de algum deles morrer.
Actividades
Apesar dos documentos não esclarecerem, os escravos de forma geral, ocupam-se nas actividades e serviços caseiros, relacionados com a actividade profissional do dono.
Apenas um caso é esclarecedor. Trata-se de um pescador do Barreiro, que é também proprietário da embarcação em que pesca, e, é dono de um escravo que ocupa o seu lugar no barco. Quando este naufragou e toda a tripulação morreu, obviamente que foi o escravo a vítima. Neste caso o escravo funcionou como seguro de vida para o dono.
Da mesma forma, os escravos, de proprietários agrícolas é suposto que trabalhassem nas actividades agrícolas. Como nas Hortas, em Palmela, ou, na quinta da Freira, na Moita.
Já os escravos, de militares, padres, doutores, funcionários ou nobres, é suposto serem empregados domésticos e pessoais dos donos.
Também é referido como proprietário de um escravo, um indivíduo com a profissão de carpinteiro de barcos, outro de cabeleireiro e outro como estalajadeiro.
Entre as pessoas pretas, mas não referidas como escravos, nem como livres ou forros, é referido um carpinteiro, um oficial da fábrica da sola, outro trabalhava no arsenal e ainda uma mulher como linheira.
As actividades e o comportamento social dos escravos, são regulamentadas por posturas municipais, como na Moita. Neste caso, porque o número de escravos é diminuto, torna-se ridículo, legislação específica destinada a meia dúzia de pessoas.
Proprietários
Na região não existem os grandes esclavagistas, proprietários de dezenas de escravos. Aqui não existem actividades agrícolas ou industriais com base em mão-de-obra escrava.
A maioria tem apenas um ou dois escravos, raramente mais. Mesmo proprietários de casais de escravos com objectivo reprodutivo são raros.
Apenas em dois casos o escravo é propriedade de dois donos diferentes. Diferente do facto dos proprietários serem casal, que é vulgar.
Apenas identifiquei duas escravas que sendo propriedade de um indivíduo, surgem depois como propriedade de outro, ou seja, mudaram de dono.
Curioso é o facto de algumas vezes, por morte de uma criança, ser referido que o pai tem um dono e a mãe ter outro diferente. Ou seja, os esclavagistas combinam a reprodução dos seus escravos, ou então, alugam o macho, como se faz com o gado.
Também se verifica que existem casais de escravos em que o homem é pertença de um senhor e a mulher de outro. Provavelmente para rentabilizar o investimento com o nascimento de novas crias, (é assim que são tratadas).
O facto de em geral essas pessoas serem tratadas como escravos, e outras como preto cativo, pode significar a diferença entre os escravos já nascidos em Portugal e outros oriundos de África, ainda imbuídos da cultura dos seus países, e por isso incapazes de cumprir tarefas específicas no novo contexto para onde foram transportados.
Nesta época de luxo e pomposidade, também não é de excluir a hipótese de alguns destes esclavagistas serem donos de pessoas como se de objectos se tratassem, com símbolos de riqueza ou poder, para além de efectuarem as tarefas que lhes incumbissem.
Forros
Surgem vários casos de escravos que adquiriram alforria. Também nesta situação não é claro o motivo, ou a forma como a adquiriram. Apenas numa situação esclarece que foi o padre que por sua morte lhe deu alforria.
Vários são os indivíduos, pretos, que sendo velhos se dedicam à mendicidade. Não são referidos como escravos, nem como forros. Eventualmente adquiriram a liberdade depois de velhos, por já não serem úteis aos donos. Isto verifica-se por uma carta de alforria dada a uma mulher em Alhos Vedros, como reconhecimento por “me ter servido muito bem e já estar velha”. Por detrás de um sentimento piedoso, pode esconder-se a suprema hipocrisia.
Outra situação que se confirma por uma carta de alforria são as relações familiares. O esclavagista fazer filhos na própria escrava. Neste caso é dada alforria a um rapaz porque, “é filho do meu filho”, ou seja, é seu neto. Ainda assim na condição de “me servir enquanto for vivo”.
Por este tipo de acentos não sabemos o que acontece quando morre o esclavagista; quem fica com o escravo? Desde logo, se esse esclavagista tem herdeiros directos, ou se tendo vários, estes disputam a herança. Existem situações em que o escravo é propriedade de um indivíduo e por morte deste, surge como assistente ou como criada em casa de outra pessoa. Por outro lado, temos de considerar se o herdeiro está interessado na herança, ou seja, se o escravo lhe interessa. Sendo velho, tendo alguma doença incapacitante, ou de alguma forma não seja rentável para o seu senhor, se este não é abandonado.
Relações sociais
Os escravos aparecem também relacionados com funções que aparentemente não lhes seriam confiáveis. Assim, várias crianças enjeitadas ou filhos de pais incógnitos são entregues ao cuidado de escravas.
O contrário também se verifica, crianças pretas ao cuidado de mulheres brancas. O facto de haver crianças enjeitadas, de cor negra, significa que a escrava que abandonou o filho esperava que nessa condição se livrasse da escravatura. Poderia ser filho de um casal de pretos forros, mas nessa condição tinham outros meios para deixar o filho, inclusivamente na roda.
É provável, também, que o óbito de alguns escravos não fosse registado. Num caso o registo é feito algum tempo depois por ordem do Reverendo Prior, porque o padre não o tinha feito.
É referido ainda um preto como maltes, ou seja, indivíduo livre catalogado como vadio.
Outro homem preto, não se sabe se era livre ou cativo.
Por fim, uma escrava foi achada afogada no poço, e no acento é registado que foi “sem culpa de seus senhores”, o que é despropositado e leva a supor que alguns morreriam por culpa dos senhores.
Religião
A maioria dos acentos de óbito de escravos, não refere os sacramentos da hora da morte. Muito poucos se confessam e cumprem os requisitos desse momento.
Os enterramentos são em geral no adro, raramente pagam a “esmola costumada”, por pobreza. Ora, não é suposto os escravos serem ricos, ou mesmo possuírem dinheiro, logo a obrigação de pagar a sepultura deveria pertencer ao dono, que, como é evidente se eximia a esse encargo. Portanto, também na morte, os escravos estão ao nível mais baixo da população.
Ainda assim, alguns, através dos donos, suponho, pagam a dita “esmola”. Raríssimos os escravos sepultados em local privilegiado das igrejas.
Relações familiares
É um pouco pretensioso tentar encontrar algum tipo de relação familiar entre escravos. Todavia, ao longo do tempo acabaram por se estabelecer diversos tipos de relações raciais, que desvirtuam os fundamentos ideológicos da escravatura.
Mas podemos identificar relações maritais entre escravos, sejam propriedade de um só senhor, ou, cada um dos membros do casal de um senhor diferente.
Também existem casais em que o homem é branco e livre, e a mulher preta escrava. Os filhos são escravos do dono da escrava.
O contrário também se verifica em três ocasiões, o homem é preto e a mulher branca, nestes casos são ambos livres.
Também acontece haver filhos de homens mulatos ou pardos, com mulheres mulatas ou pardas, assim como com brancas ou pretas. O contrário também se verifica. No início do século XIX, as relações entre brancos, e sobretudo, escravas pretas, produziu quantidade suficiente de mulatos, livres e forros, alguns adquiriram posições de relevo, capaz de anular e descredibilizar os fundamentos da escravatura.
No final do século XVIII, um indivíduo, assume que os filhos, naturais de Minas Gerais, no Brasil, são de uma preta.
O mais comum é as mulheres escravas terem filhos de pai incógnito. Como é pouco credível que um esclavagista tivesse uma escrava para o vizinho fazer filhos, o mais razoável é que fosse objecto sexual do dono, portanto o pai é o próprio esclavagista ou alguém das suas relações próximas.
Várias vezes um esclavagista tem uma escrava, de nome Maria, (por exemplo), que tem uma filha de nome Maria. Anos depois, após a morte da escrava mãe, o dito esclavagista tem uma criada de nome Maria. Pode não ser a filha da escrava, mas, sem outros elementos fica a suspeita. A Maria, criada, deveria ser escrava, se fosse filha da primeira, não o sendo é legítimo pensar que as relações familiares, eventualmente pai / filha, fossem mais fortes.
O escravo tem apenas nome próprio e raramente apelido, ou ficam com o apelido dos donos, como quando os esclavagistas são donos de casais de escravos, que vão tendo filhos, alguns desses indivíduos adultos, (os pais), ficam com o apelido dos donos, que depois transmitem aos filhos, mesmo que continuem escravos ou tenham adquirido a liberdade. Por isso, diversos apelidos de esclavagistas surgem associados aos seus escravos, que se perpetuaram até hoje, o que significa que algumas dessas pessoas, orgulhosas da sua raça e do seu lusitanismo, poderão ser descendentes directos dessa população negra e escrava.
A propriedade dos escravos ser de um homem ou de uma mulher não é indiferente. Enquanto os escravos femininos propriedade de homens tem em geral filhos de pais incógnitos, já quando são propriedade de mulheres os pais são mencionados.
Conclusão
Não se pode considerar sociedade na península de Setúbal como esclavagista, porque o número de escravos não era suficientemente elevado nem eram economicamente relevantes.
Se podemos considerar que nas principais localidades chegou a ter alguma importância em termos numéricos, já nas freguesias mais pequenas foi nula, e nas de base essencialmente rural, de importância muito reduzida.
Também é perceptível que com o aproximar do final do século XVIII o número de escravos foi diminuindo e aumentando os homens e mulheres pretos e mulatos na condição de livres.
Nas freguesias onde consultei os registos de casamento e baptismo (não o fiz para as freguesias da cidade de Setúbal) não existem acentos de homens ou mulheres pretos ou mulatos. Não significa que não existam, simplesmente o padre não o refere.
Mas que estas pessoas casaram e tiveram filhos, percebe-se por referências indirectas, o que significa que muitos de nós somos seus descendentes.
O esclarecimento dessas situações exige uma análise individual, apesar de alguns apelidos serem muito suspeitos, porque são referidos e sabemos quais são. Mesmo casais de pretos ou mulatos, ou que um membro do casal o seja, inclusive com brancos, embora livres, eram filhos ou descendentes de escravos.
Este é apenas o início de um trabalho, cujo esclarecimento e aprofundamento das várias temáticas relacionadas, exigirá um estudo e uma investigação mais profunda com a consulta de outra documentação relacionada.

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