domingo, 4 de março de 2012

Assistência social na Sª Casa da Misericórdia de Alhos Vedros. 1850-1940.

Assistência social na Sª Casa da Misericórdia de Alhos Vedros. 1850-1940.

Introdução
Ao longo de meio milénio, têm as Misericórdias, desempenhado um papel fundamental na assistência social do nosso país tantas vezes insubstituível. Esta criação original do nosso povo, foi tendo nestes séculos diferentes motivações, políticas e religiosas, e, quase sempre, ao sabor da capacidade económica e da caridade dos seus irmãos.
Alhos Vedros e a sua misericórdia, não foge a esta regra e a instituição que até hoje é deve-se ao labor de muitos e muitos Alhosvedrenses, que desinteressadamente a foram dotando, cumprindo simultaneamente com várias obras pias, que a si próprios impunham como deveres humanitários e cristãos. Assim, neste período, a que de seguida nos referiremos em retrospectiva, daremos particular atenção a esses aspectos, nomeadamente; protecção à infância e jovens, protecção aos idosos e a todo o individuo reconhecidamente necessitado, protecção na doença e no infortúnio, e recursos para exercer essa protecção.

Protecção à infância e jovens.
Torna-se fácil demonstrar que a Santa Casa desde muito cedo mostrou vocação para a educação. Podendo citar vários exemplos representativos. Em 1877 foi solicitado à mesa administrativa o seguinte: …por iniciativa do Administrador do Concelho que era de urgentíssima necessidade a criação de uma cadeira de ensino primário para o sexo feminino nesta freguesia e que a Junta desejava ao requere-la mostrar-se habilidade com casa e mobília para a estabelecer propõe pedir a que serviu do andador e a que serve de sessões desta Comissão obrigando-se a repará-las condignamente dará lugar a este grande melhoramento local, deliberou aceder à junta da Paróquia as casas de que se trata para a escola do sexo feminino, e habitação da professora...[1] Assim foi, a escola funcionou nessas casas pelo menos até 1925, altura em que a Mesa Administrativa exigiu uma renda mensal de 50$00, pois havia vários anos que a Junta da Paróquia vinha tentando tornar-se proprietária do edifício. Viria também ali a funcionar a escola do sexo masculino.
Também a ajuda aos órfãos estava contemplada, como no caso de Francisco Cordeiro. Em 1925 a Mesa decidiu; atendendo que, … não tem ninguém que o queira socorrer, … comprar um fato de kaki, boné do mesmo tecido, umas cuecas, umas meias, um par de botas…[2] a outro, de nome Francisco Correia, e nesse mesmo ano, decidiu a Mesa, interna-lo numa escola particular e comprar-lhe os livros. Em 1937 decidiram comprar roupa para 22 crianças, cujo custo foi de 1 011$65. A promoção de casamentos entre indivíduos pobres deste concelho, com outros, de outras regiões, sobretudo providos[3] da Misericórdia de Lisboa, como foi o caso de Jaime Augusto de Paiva Lima, (corria o ano de 1853), sendo a cerimónia realizada na capela da Misericórdia pelo capelão José de Santa Coleta.
Por último e não menos importante, temos a criação da maternidade que funcionou até há bem pouco tempo e que iniciou a sua actividade em 1939, pelo que passamos a transcrever; … o relatório das senhoras, que instalaram a maternidade, … que mereceu o aplauso de todas as pessoas de bom coração. Conseguiram as senhoras, com a sua persistência, … com que levaram a efeito a compra do indispensável para a maternidade que custou 2 706$30… só à sua parte fazer a colheita de 1 969$80 …[4] Depois do reconhecimento pela acção das ditas senhoras mais não diz.

Protecção aos idosos e a todo o tipo de necessitados
Passemos agora a citar aspectos da protecção às pessoas idosas. Até ao princípio do século XX não parece que haja por este grupo social as atenções que hoje lhe dispensamos. São incluídos nos orçamentos, verbas destinadas a pobres sem especificar qualquer verba para idosos. No entanto essa verba foi crescendo como se verifica em 1895, ou reforçada como em 1901, o que decerto englobava o apoio à terceira idade. Digamos portanto, que neste período a situação geral era difícil, como mostra um documento de 1902; .... a receita média ordinária desta Santa Casa é absorvida pelos encargos pios ficando uma insignificância para a beneficência com que se pode acudir aos pobres…[5] . Depois de 1924, a Santa Casa começa a socorrer alguns idosos destinando-lhe uma verba, sendo a primeira dirigida a Antónia Cordeiro que passou a receber a quantia mensal de 10$00, sendo a outras duas cedido o quintal e parte das casas para aí viverem. No ano seguinte um Francisco da Maia, com dez tostões por dia e um José Francisco Alexandre e um António Azevedo com 15$00 mensais, beneficiaram do mesmo privilégio, passando a ser regulares estes subsídios, sendo a esmola transferida para outro após a morte do beneficiário. Estas esmolas não eram dadas exclusivamente a idosos, mas também a qualquer pessoa que não podendo trabalhar e não tendo recursos, como era o caso de João Moura que tinha três filhos e foi socorrido com o subsídio mensal de 30$00 e também a José dos Anjos foi atribuído um subsídio pecuniário e ainda um litro de leite e um pão pequeno por dia. Mais a 225 indivíduos foram fornecidos alimentos na importância de 1686$90. As responsabilidades para com estes indivíduos foi aumentando tendo a Mesa em 1926 assumido a compra do caixão para os seus providos e comparticipação nas despesas do funeral, para isso adquiriu uma carreta funerária. Aos pobres de forma geral, bem como aos viajantes, cedeu a casa do Paço para abrigo nocturno. Em 1933, os idosos socorridos são em número de 16 com os quais se gastou 1910$00. Depois da construção do Asilo Hospital, passaram a recolher normalmente os idosos sendo os primeiros hóspedes, …quatro velhinhas que estão confortavelmente instaladas…[6] custando a sua alimentação 354$20, esperando a Mesa aumentar esse número logo que tenha verba, e, subsidiava outros nove na importância de 1200$00, no ano imediato os idosos em regime interno passaram a sete, e foram depois aumentando regularmente.

Ajuda na doença e infortúnio
Outra das actividades da Misericórdia baseava-se no socorro à doença e ao infortúnio. Já no século XVII a Câmara do antigo Concelho de Alhos Vedros, ao contratar o médico Domingos Ferreira, estipulava que numa das cláusulas que os providos da Santa Casa, o referido médico curaria por amor de Deus. Também em 1885 se passou um caso singular que passamos a transcrever; ... lamentável caso de João Escumalha que regressava a casa e se disparou a espingarda que trazia ferindo-se no braço, esmagando-lhe e rompendo-lhe uma artéria, de que resultou forte hemorragia sendo socorrido pelo Doutor João Cândido Cordeiro, pelo desvelo, carinho, prontidão e desinteresse… para salvar o infeliz…[7] Este episódio revela a particular atenção que se dava a casos de infortúnio. Assim ainda antes do fim do século a Mesa começa a estipular uma verba para medicamentos, pelo menos, desde 1894, ano em que estipulou 25$000 reis, passando a ser essa verba mantida, embora algumas vezes cortada por motivo de declínio económico. O grande passo na assistência médica foi dado em 1924, quando a Mesa decidiu abrir um posto médico. Resolveu por isso mandar limpar uma parte do edifício e fazer biombos que serviriam para as divisões, assim como mandou fazer mesa de operações e comprou utensílios indispensáveis, mandando logo de seguida pintar os gabinetes, maca, secretária, cadeira e banco de operações, e, caso estivesse dentro das verbas comprar reposteiro para isolar igreja dos gabinetes. Este trabalho foi feito por António Valentim e demorou onze dias e cinco horas ao preço de 15$00 ao dia. Para esse serviço foi admitido o médico Manuel Lopes Falcão, que oferecia os seus serviços gratuitamente, enquanto a vida da Misericórdia não fosse mais próspera. A Mesa acabou por fazer um acordo com o referido médico, pelo qual, este se obrigava a dar duas consultas por semana e a socorrer todos os feridos, pelo que a Mesa autorizou o médico a utilizar o consultório e os instrumentos para consulta dos seus clientes. No entanto, esta instalação não foi pacífica; alguns mesários eram de opinião que nunca se deveria gastar o dinheiro na montagem do consultório, outros entendiam que muito em breve se deveria fazer uma enfermaria ou até um hospital que servisse todo o Concelho. Apesar de tudo foi aprovado o que referimos primeiro decidindo admitir uma empregada para ajudar o médico e fazer limpezas, com o ordenado de 45$00, pelo que foi admitida a Sr.ª Joaquina de Almeida Tarouca, que, acabou por oferecer o seu ordenado à instituição, vindo a trabalhar sem qualquer remuneração. Este benefício começou desde logo a ser bastante concorrido, sendo significativo o socorro prestado aos operários da fábrica Cabeçadas, quando o telhado desta caiu ferindo 50 pessoas. Em 1932 faziam perto de 1.000 curativos que orçaram em 708$70. O aumento destes serviços obrigou ao aumento de produtos farmacêuticos e apesar do Sº Etelvino Assunção Carvalho fornecer todos os medicamentos com 20% de desconto, a Mesa propõe montar a sua própria farmácia. O passo seguinte dá-se em 1932, quando se decide dar início à construção do Asilo Hospital, que inicialmente foi orçado em 74 000$00. O projecto foi realizado pelo Sº Alexandre Santos Pireza, e o orçamento da obra foi elaborado pelo Eng.º Nunes Correia. Para o seu início, cuja primeira pedra foi lançada a 18/6/1934, a Mesa contava com a importância de 47 501$40, votada e prometida pelo Estado, com 2 000$00 da Câmara Municipal e 300$00 da Junta de Freguesia, e ainda com os donativos do Sr. Manoel dos Santos Jorge que oferecia a madeira do seu pinhal, e dos Srs. Sebastião Alves Dias e João Francisco Ângelo que ofereciam a cal das suas fábricas. A obra apesar das vicissitudes, acaba por ser inaugurada a 5/6/1935, …num acto solene e grandioso o mais grandioso que se deu em Alhos Vedros nos últimos tempos…[8]  No fim desse ano já tinham estado internadas onze pessoas e em Dezembro estavam internadas outras quatro. Em função disso foi necessário admitir um quadro de pessoal assim constituído; um médico sem vencimento, um enfermeiro com 45$00 mensais, que foi o Sr. Ezequiel Fernandes e recebia um vencimento simbólico, um escriturário com 55$00, um servente contínuo com 100$00, e um cobrador com 41$00. Durante o ano de 1936 internou 22 doentes cujos custos foram de 2 783$35. Em 1937 internou 23 doentes, e depois foi sempre aumentando, assim como as necessidades de instrumentos e equipamento.
Recursos para o exercício da assistência
Referente aos recursos económicos da Misericórdia, estes eram sobretudo constituídos por dádivas, que nos meados do século passado atingiam uma soma deveras elevada, devido à acumulação dessas ofertas. Os seus imóveis eram os seguintes, uma igreja, um moinho de maré, um viveiro, um sapal, um paul, duas marinhas, três courelas de vinha e terra com mais de 100000m2, quatro quintais com mais de 250000 m2, umas casas caídas, oito casas, nove casas com quintal e dez vinhas com mais de 300000m2. Estas propriedades estavam avaliadas em 5 433 000 reis, e os rendimentos anuais eram de 163 750 reis e estavam espalhadas pelos actuais Concelhos da Moita e Barreiro. Relativo a recursos materiais a Mesa que cessou o mandato em 1887 declarou existir; uma inscrição de um conto, dois certificados de 50$000 reis, dezanove certificados de 100 000 reis, um cálice com patena e colherinha de prata, um resplendor de prata do Senhor dos Passos, uma frontal encarnada rezada, um pálio de ouro em bom uso, duas capas d’el Rei, um pendão em bom estado, um guião, seis peças para guarnição de esquifes, duas toalhas mais uma de renda, uma camisa e um missal. A comissão de 1899 declarou existir mais; três certificados de 50 000 reis, sete de 100 000 reis, um diadema de Nª Senhora, um panelão em bom estado e um jarrão.
Estes bens foram crescendo até ao início da década de vinte. No inventário de 1924 verifica-se existir; a importância de 402$10 referente ao saldo da Mesa cessante, 26 inscrições de 100$00, uma de 1000$00, cinco certificados de 50$00, seis castiçais de madeira, três castiçais em chumbo, onze imagens de diversos Santos, duas cruzes de madeira, dois armários de arquivos, dois crucifixos, seis bancos de pinho, duas lanternas, duas varas pertencentes ao guião, oito cadeiras, sete bancos de encosto, seis estolas, duas alvas brancas, seis guarnições de andor, oito almofadas de andor, um resplendor de prata, uma coroa de espinhos, uma túnica, uma corda de linho de uma imagem, três camisas, dois colarinhos, um par de punhos, um diadema de prata com pedras artificiais, um manto de seda azul bordado a ouro, um vestido roxo, um pano de renda, uma toalha de algodão, uma cabeleira de uma imagem, um cálice de prata com patena e colher, um andor, um cofre de madeira, um armário com vidraça, um túmulo em madeira, um quadro pintado a óleo, uma maca para condução de doentes, uma mesa grande de pau-santo e uma grande quantidade de livros em mau estado. Como desapareceu este espólio? Quanto aos bens móveis parte deles foram vendidos para a construção do Asilo Hospital, outros pura e simplesmente roubados. Quanto aos imóveis, alguns foram vendidos devido à lei das desamortizações, e convertidos em inscrições como em 1874. Outros como em 1905, a Mesa referindo-se a uma marinha diz; … não compreender aqueles senhores se apoderarem de uma propriedade que lhes não pertencia…[9], e outros foram vendidos pela Mesa como em 1890.
Embora estes rendimentos fossem de facto grandes havia determinadas obrigações para as quais não havia disponibilidade económica. A primeira seria o imposto sobre os legados pios. As dívidas deste imposto ascendiam em 1886 a 441 440 reis e já em 1878 a Misericórdia tinha sido condenada, no Tribunal do Montijo, ao pagamento deste imposto no valor de 139$980 reis, mais todos os encargos do Tribunal.
Também as dívidas com cera e azeite para as cerimónias religiosas eram elevadas. A dívida do azeite relativa aos últimos meses de 1888 era de 1$800 reis. Outra fonte de rendimentos para a Misericórdia, seria a taxa aplicada nos bilhetes de espectáculos, sobretudo nas touradas. Desde o último quartel do século que havia contrato entre os empresários da praça de toiros da Moita e a Mesa, em que este pagaria 40 000 reis por todas as corridas durante as festas e mais 10 000 reis por qualquer outra fora desse tempo. Quando em 1910, devido a desacordo, as corridas não se realizaram, as verbas destinadas aos pobres quase desapareceram. Para finalizar, digamos que foram os irmãos os principais financiadores, e nessa linha, estão os já atrás referidos, mais as seguintes pessoas cujas dádivas levou a Mesa a atribuir-lhes o título de sócios beneméritos;
Dr. Manoel Lopes Falcão.
Pedro Rodrigues Costa.
Teófilo Braga.
Joaquim José Sancho.
João José Sancho.
Benilde Magalhães Menezes.
Dr. João Luís Ricardo.
Banda Filarmónica da Velhinha.
Para além destes uma multidão de anónimos como os Srs. Augusto Fatia e António Diogo, actuais residentes na Santa Casa, que deram o seu trabalho. O segundo financiador foi o Estado. A partir do fim da década de vinte, as responsabilidades do estado para com a Misericórdia de Alhos Vedros, portanto com a assistência social no concelho foi sempre aumentando vindo a tornar-se regular. Para isso, foi decisiva a acção do então provedor, o ilustre Sr. Francisco Marques Estaca Júnior, republicano e democrata assumido, que conseguiu das autoridades governativas, reconhecimento e apoio para lançar as bases de uma moderna Misericórdia.

Bibliografia: Livro do Tombo.
Livro de acento dos Irmãos. 1821.
Livro de acento dos foros, rendas de casas, pensões e dívidas. 1856.
Livro de Vereações do Concelho de Alhos Vedros. 1682-1693.
Livro de actas da Sª Casa. 1875-1877.
Livro de actas da Sª Casa. 1888-1910.
Livro de actas da Sª Casa. 1910-1929.
Livro de actas da Sª Casa. 1929-1990.
Documentos diversos.
Trabalho incluído no dossier de candidatura aos cursos de formação profissional promovido pela Sª Casa da Misericórdia de Alhos Vedros. Março de 1990.


[1] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1875-1887. Folha 4.
[2] Livro de actas da Sª Cº da Misericórdia. 1910-1928. Folha 32.
[3] Terminologia utilizada na época em relação ao beneficiado.
[4] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1929-1990. Folha 60.
[5] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1888-1910. Folha 32.
[6] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1888-1910. Folha 48.

[7] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1888-1910. Folha 48.
[8] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1929-1990. Folha 32.
[9] [9] Livro de actas da Sª Cª da Misericórdia. 1888-1910. Folha 37.

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